segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Poética de Alberto da Costa e Silva em Castro Alves


[Castro Alves posando estilo Brad Pitt]


[Castro Alves pego de surpresa pensando]

                                                 
                                   [Alberto da Costa e Silva lendo como sempre]



           Diversas vezes, em 'Castros Alves, um poeta eternamente jovem', me questionei se Alberto da Costa e Silva duvidava de minha capacidade, nem de análise ou síntese, mas de leitura mesmo, sobre o texto. Pois somente dessa forma sua didática demasiadamente mastigada poderia se justificar. Só depois de algumas dezenas de páginas, comecei a aceitar essa escrita com maior gratidão, como se aceitasse um presente numa data não comemorativa, dada por espontânea demonstração de afeto. A partir daí, próximo da metade do livro, diminui consideravelmente meu senso crítico como se correspondesse as preciosidades das quais tanto cadenciava Da Costa e Silva. Talvez. Talvez tenha também me entregue ao deleite da prosa, resignando igualmente ao prazer estético do autor. Bem, os dois. Ambos os efeitos de uma escrita sensível e envolvente. Quanto ao segundo, salvo uma passagem que evidencia esse contágio poético, e contraria o estilo formal, até estéril, que a maioria dos historiadores utiliza para minimizar as inevitáveis deformações das interpretações sobre a realidade: 'E velava o seu sono, cuidadoso para que nenhum rumor a despertasse, nas manhãs que se seguiam as noites maldormidas. Eugênia deixava-se adorar, encantada por ser musa e senhora.' Agora, separado do resto do livro, a passagem não serviu de tão interessante como a queria que servisse. Inúmeras outras, com certeza, servem melhor do que ela pra exemplificar o caso. O livro, indiscutivelmente, é um livro de delicadezas.
          Depois da 'maratona' de Casa Grande e Senzala, como bem disse o Igor, a biografia poética de Castro Alves parece ter vindo como um refresco. Daqueles bem aguados, e com bastante açúcar. Porque o interesse da descrição e análise do cenário político-econômico-social-nacional-mundial-espacial-histórico[...] não chega a ser maior do que a descrição e análise da vida pessoal de Castro Alves. Isso não é de todo ruim. Mas também não é de todo bom. O estudo da história parte de uma coleção de testemunhos, uns são pessoas outros coisas, uns participam mais outros menos, uns falam menos outros mais, uns são sinceros outros mentem. Todos, em relativo grau de importância, impactam e compõe diretamente ou indiretamente seu cenário não-sei-das-quantas. E quanto a isso, Castro Alves é um pródigo testemunho, de direta e elevada importância, precursor do abolicionismo quando 'a escravatura era aceita como normal por quase todos' ou 'a escravidão era um fato normal da vida, estava ali para sempre'.
          O romantismo começou a nascer, algum estágio antes de broto ou feto, lá pelo século XVII, precisamente na aristocracia da nobreza provençal do sul do França. Pode-se dizer que de lá o amor idílico em seu sentido romântico, erótico, tal o entendemos hoje, foi concebido. Amar, quanto amor cortês, 'era um esporte aristocrático' como disse Paulo Leminsk. Só depois, bem depois, veio a se popularizar. E só depois de um processo, quase mecânico industrial, com a entrada das cantigas de amigo portuguesas nas máquinas importadas brasileiras, é que saíram esses poemas românticos abolicionistas de Castro Alves, que constituem a terceira e última etapa do romantismo no Brasil.
           A vida de Castro Alves não constitui uma excepcionalidade como um Machado de Assis do mesmo período. A poeta nasceu em Salvador, branco, bonito, seu pai era de grande influência na cidade e já participava de seu nicho cultural, intelectual. Estudou nas melhores escolas, e teve todo o suporte para a realização de suas peripécias poéticas. Pôde Castro Alves viver de e para a poesia, em seu sentido mais delirante. Tanto que em seu leito de morte ainda suspirava versos. O convívio incessante com seu ofício poético, e com suas declamações teatralizadas, fizeram de seu delírio em cena a sua própria vida. A vida do poeta, após a saída de Salvador, mais parece uma grande peça teatral. Poemas declarados, mulheres, paixões, intrigas, boêmia. O meninote, como o chamou carinhosamente Alberto Costa e Silva, por mais que vivesse em absoluta situação de conforto, não se deixou aconchegar. Poderia, como os muitos românticos, entregar-se aos simples encantos da vida. Mas sua sensibilidade não o deixou. Era-lhe impossível manter-se passivo quanto ao mundo à sua volta, impossível desviar os olhos para o que realmente acontecia. Por mais que a escravidão fosse 'uma instuição ancorada na história, sancionada pela fé cristã, amparada pelas leis e da qual dependia todo país', nada lhe parecia suficiente razoável para sustentar tais atrocidades. A dedicação social de seu ofício poético constituiu a sua verdadeira excepcionalidade enquanto artista. Os poucos poemas que lhe serviram para denunciar a escravidão bastaram para revoltar e indignar os que lhe deram ouvidos, ou mesmo leram. Escandalizava, e era preciso que alguém escandalizasse mesmo. Lógico, escândalos aos versos decassílabos e erutizados. Se bem que Castro Alves, por maior erudição que tivesse, ao ter grande preocupação social tinha, além dela, uma preocupação popular. Em suas declamações públicas era preciso um linguajar apropriado, era preciso que o público entendesse, e assim se sensibilizasse quanto ao poema, senão o conteúdo de suas palavras adornadas não chegariam às cabeças de quem as destinava e queria: o povo, em sua força mais visceral e popular. Salvo uma passagem, uma crítica aos poemas da ex companheira do poeta, de Ramalho Ortigão a Eugênia Câmara: 'não prestavam para nada'. Uma asneira, porque ao menos os poemas de Eugênia Câmara prestavam, irrefutavelmente, à própria Eugênia Câmara. Talvez, quanto à importância. Daí aquela diferenciação dos testemunhos históricos em que havia falado. Certamente que hoje em dia o debate poético esteja em outro foco, talvez um 'retrocesso' na busca de formas de ofício, um resgate a formas que possam se constituir únicas na sociedade, universais por certo momento. Como uma linguagem pertencente a certo grupo, alguma coisa que se justifique socialmente, e não se rebele quanto a essa posição de justificativa. Isto, talvez, torne a arte um integrante ativo para sociedade. Fico pensando, como seria se Castro Alves se rebelasse quanto à métrica romântica, e declamasse versos livres. No campo da suposição, o poeta talvez fosse escorraçado pelos críticos da época. E nem mesmo poeta fosse considerado. Estamos fadados à condição histórica e social com a qual nascemos e vivemos, como a língua em que falamos ou as roupas que podemos vestir, lógico que tudo está e é passível de mudança. Mas até mesmo esta mudança está condicionada à sua própria condição, a sua limitação social. Quanto à língua e a sua respectiva linguagem, e um pouco mais sobre o que acontece hoje, se buscamos na pluralidade das formas, da linguagem já com seus erros e desvios pré-estabelecidos - reconsiderados se erros ou se desvios, e na aceitação da diversidade, não é porque chegamos a um estágio maduro de total descoberta, mas porque chegamos a estágio de esgotamento de formas anteriores. Toda a língua é determinada por um estoque de formas, e de seus códigos somos escravizados, mas por ela atravessamos e devemos atravessar para outros lugares, para lá onde a liberdade principia. São estas as funções de seus símbolos. Não são janelas como bem falam, pois numa interpretação poética, cada janela possui certa paisagem. Mas quanto à língua, aos códigos, aos símbolos, às palavras, uma janela pode expor diversas paisagens. A comparação, então, estaria mais para um monitor de programação infinita. Assim, amarrando um pouco isso tudo, as linguagens realizam os seus possíveis enquanto línguas. Mas, a arte enquanto pós-moderna, contemporânea, precisamente as poesias, os poetas que trabalham com as palavras, têm o dever de diluir a linguagem com suas formas demasiadamente saturadas. Lembro Manoel de Barros: 'Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem'. Assim fez também Mallarmé, com poesias que mais pareciam destinadas aos poetas. Castro Alves seguiu um caminho diferente do que se discute em poesia hoje, e se isso é dito como discutível, com a criação de paisagens sinestésicas e sensíveis. Seus poemas sociais tinham um esclarecido destinatário, e até um objetivo: libertar uma sociedade escravista de seus paradigmas desumanos. Há poesias e poesias, poemas e poemas, categorizá-los estaria na inevitável exclusão de alguns. O que evidencia as peculiaridades de cada um, e na falha do sistema de ordenação. Mas é possível, além disso, apontar estilos, tendências e influências. Como as de Castro Alves a partir de Pierre-Jean de Béranger, John Greenleaf Whittier, e pricipalmente Heinrich Heine. Suas influências foram tantas que cometeu delas uma grande gafe ao ‘repetir as imagens tiradas do orientalismo romântico francês e a estender para o Sul do Saara as paisagens do deserto'. Basicamente, achava que a terra natal dos escravos, como toda África, se parecia com o deserto do Saara, com seus 'oceanos de areia’, muito diferentes da realidade a que correspondiam, mais ao sul, algumas fartas florestas e vales floridos. Mesmo nisto, Alberto da Costa e Silva não se mostra indignado. No texto, que estava com a mão distante, logo se aproxima em defesa do jovem poeta, como um vovô que protege o neto depois dele ter feito alguma traquinagem: 'O retrato trágico exigia o deserto'. Justificou a gafe, protegendo-o de uma forma muito afetuosa, até meiga, como se apropriasse de sua familiaridade. Essas mesmas apropriações não se resumem somente a esse episódio, Da Costa e Silva traçava, quase sempre, o destino do outro poeta como se ele o conspirasse para si mesmo. De fato, um contador que já sabia o final de toda tragédia, mas ao mesmo tempo se surpreendia e se espantava tal como um leitor. Por isso, não é difícil se sentir familiar ao Alberto da Costa e Silva como, também, ele se mostrava familiar a Castro Alves. Tudo por conta desse esmero, até mesmo carinho, que qualquer um desconfia quando bate um primeiro olhar.         
          Em parte, me senti particularmente tocado pelo Antônio Frederico de Castro Alves. Nunca o tinha lido, e nem sabia da importância social de suas imagens. Provavelmente, dadas as melhores circunstâncias, se eu estivesse vivo por sua época, e relativamente próximo de seu convívio, certamente que me esforçaria pra se tornar um de seus amigos. Acho que a idade talvez nos tenha aproximado, ou só o apreço do autor por ele. Ou ambos, novamente. Por essa época, nas disputas hilariantes que aconteciam nos teatros, entre Tobias Barreto e Castro Alves, certo que ficaria no time do segundo, e talvez naquela confusão lá em 23 de 1866, quando só a polícia conseguiu apartar a briga entre as gangues rivais, não seria improvável que estivesse ali pelo meio. Curioso é saber que, apesar de tantas sensibilidades, erudições, e discursos proféticos, a terceira fase do romantismo foi dividida entre duas facções somente por desacordo pessoal entre seus maiores representantes. Como se rivalizassem por ter apenas gostos diferentes. Um tanto infantil. E ainda as temáticas de suas disputas eram sempre desmoralizantes, e às vezes de esclarecido machismo ao ataque de suas mulheres. Salvo em Gregório Duvivier, numa coluna pra Folha: ‘
Filho da puta, filho de rapariga, corno, chifrudo. Até quando a gente quer bater no homem, é na mulher que a gente bate. A maior ofensa que se pode fazer a um homem não é um ataque a ele, mas à mãe — filho da puta- ou à esposa — corno. Nos dois casos, ele sai ileso: calhou de ser filho ou de casar com uma mulher da vida. Muitos versos eram feitos de improviso, principalmente por Castro Alves, como sambistas ou até mesmo mcs de séculos passados. Enfim, no cultivo de minha leitura, confesso que sofri um pouco do contágio poético romântico, e fui ler alguns poemas ufanistas de Gonçalves Dias – muito diferentes como primeira fase. De tudo, acabei escrevendo um poeminha. E claro, não se compara às grandiosidades românticas. São hexassílabos, acentuação à sexta, uma antes dos decassílabos heroicos. Por isso o título “Heróis, jamais heroicos” pode ter uma interpretação quanto à métrica também. Ao longo do poema, falo sobre o delírio do novo personagem herói, que não mais se sustenta por esses tempos. E como falei no inicio do texto, em relação ao amor, as concepções de mundo que julgamos universais, as formas assim como os sentimentos, são sociais e se expressam socialmente. Não vieram juntos ou imbuídos com a humanidade, nem por Adão e Eva, nem pelos macacos. Seus gestos, depois de criados, vão se repetindo ao rolar dos tempos. Como as novelas da trágica romântica que sempre se repetem, e de lá casais aprendem como devem se comportar contra si mesmo. É neste sentido que a vida imita arte, e Castro Alves, nesta ingênua repetição de sua própria poética delirante viveu imerso.




'Heróis, jamais heroicos'


Heróis do mundo grande,

Que das vidas sem glória

Lutam como em Cervantes

Atrás da própria escória...

Estão de si perdidos,

No ermo do fausto sonho - 

Lar dos bosques floridos

Tão vastos... que enfadonhos -.



Bravos de sangue morno...

Canta o silêncio... O hino

De ida para o retorno:
- Sigo para lá, divino...
Onde filhos à espera
Choram a mãe servil...
Qual o leito a quimera
É suntuosa e gentil.
Assim cantam consigo
Como berros à gruta.
Pois não há inimigos
Que se afrontem a escuta.

Dos devaneios as viagens
São também verdadeiras,
Quando olhos às paragens
Veem pés sob as clareiras...
Estão imundas as pernas
Que partiram pelo nada.
- Deus, és tu com lanterna?
E de novo em disparada:

Correm sobre daninhas,
Perigosas as flores
Que nelas são as graminhas
A espantar dissabores...
Cortam o torpe vento
Que lhes aparta o ar puro,
Pondo-se aos gestos lentos
Sendo eles mais seguros...
Logo afundam as solas,
Que o chão à lama derrete,
Como o apertar das molas
Sem a força que as verte...
Tornam-se então triunfantes
De volta a ágil passada,
Mas qual o adágio infante:
-  Partir em retirada!

Já ao final do destino -
Em seu lar de partida -,
Mostra-se o desatino
Do tronco sem ferida.
Talham-se fundas marcas
Nos peitos aplainados
Para que as vis batalhas
Lembrem-se nos bronzeados 
De seus bustos feridos...
E as criativas memórias
Finquem no corpo o abrigo
Para as novas estórias.

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