Para esse encontro do Grupo de
Estudos de Botafogo, foi-nos proposto que lêssemos uma biografia de Castro
Alves, quase tão curta quanto sua própria vida. Intitulada “Castro Alves, um
poesta sempre jovem”, o livro escrito de forma belíssima por Alberto da Costa e
Silva nos faz mergulhar no universo do segundo reinado brasileiro, e nos mostra
como a ideia da abolição da escravatura no Brasil, então um absurdo na primeira
metade do século XIX, vai ganhando força e conquistando apoios na sociedade
brasileira.
Castro Alves, um poeta brasileiro
branco e remediado, esteve na vanguarda do movimento abolicionista brasileiro
e, embora tendo morrido muitíssimo jovem, aos 24 anos, foi uma peça de crucial
importância para que a ideia de libertação dos escravos comçasse a circular na
sociedade oitocentista no Brasil.
Alberto da Costa e Silva advoga
que Castro Alves tenha conseguido muito apoio às suas ideias menos pelo
conteúdo das ideias em si (que eram quase incendiárias de tão libertárias), do
que pela forma de apresentação das mesmas. Castro Alves era bonito, alto,
sedutor. Dono de uma voz grave e penetrante, nas palavras de Alberto da Costa e
Silva, Castro Alves utilizava sua boa aparência e seus dons de retórica de
forma a se fazer ouvir nas ruas e nos teatros da Bahia, de Pernambuco e de São
Paulo. Além disso, claro, era muito talentoso nas poesias que escrevia.
A primeira coisa que me ocorreu
após a leitura, embora disso não decorra um desdobramento muito grande de
discussão histórico-sociológica (talvez filosófica) é o estudo da voz ao longo
do tempo histórico. A história da voz na humanidade é uma das coisas mais
fascinantes e, ao mesmo tempo, mais difíceis de serem estudadas. Sobre Castro
Alves, resta-nos o registro, posto que tudo é ainda muito recente no tempo
histórico, de que sua voz era grave, sedutora e penetrante. Mas não há qualquer
registro da voz de Castro Alves.
As pinturas e as estátuas dão
conta da reconstrução de alguma imagem de como viviam os povos e as pessoas que
vieram antes de nós, (especialmente aqueles que viveram antes das invenções dos
registros de captura de som e imagem). Além disso, essas imagens nos ajudam a
entender o senso estético de uma época. Fósseis nos permitem reconstruir como
era o corpo das pessoas. Restos de comida em arcadas dentárias nos permitem
inferir hábitos alimentares antigos. Tecidos, joias, objetos de uso pessoal,
embarcações, várias dessas coisas podem ser encontradas em sítios arqueológicos
de forma a perimitir um aumento incremental da compreensão da vida em outros
tempos. Mas e a voz? Se de tudo fica um pouco, como diz Carlos Drummond de
Andrade em seu poema ‘Resíduo’, parece que da voz não fica nada. A música ainda
é transmissível, as notas, os acordes, as formas de tocar um tambor. O conteúdo
daquilo que a voz expressa também fica, as histórias, os contos de terror e de
mistérios, as lendas, os provérbios. É claro que é razoável supor que a forma
da voz também permanece, se entendermos que foi a retórica de Castro Alves,
mais do que suas palavras, a responsável pelo legado abolicionista que ele nos
deixou. Isso é ainda mais razoável se borrarmos a fronteira entre o que é forma
e o que é conteúdo num discurso. Enretanto, ainda assim, é fascinante como,
ainda que tentem reconstruir as entonações das falas (certamente por meio dos
registros escritos e pela oralidade de povos mais tradicionais), do timbre não
nos sobra nada. De minha parte, entendo o timbre como uma das últimas
fronteiras da reconstituição do homem no tempo histórico. Mais do que isso, o
timbre (ainda que os arquólogos mais esforçados se debrucem sobre os fósseis de
cordas vocais que porventura encontrem) permanece no homem presente como uma
limitação. Lembrando da minha trajetória agnóstica, lidar com o timbre do homem
do passado é, de certa forma, aceitar uma ignorância ante aquilo que é
absolutamente incognoscível. ‘Palavras, o vento leva’, diz a sabedoria popular.
‘Do boi, só não se aproveita o berro’, diz outro ditado. Tanto a ciência quanto
a história colocam o seu ‘No passarán!’ quanto à apreensão do timbre antigo, da
voz que já passou. Presente, mas irrecuperável. Entendida, mas incognoscível.
Clara, mas misteriosa. É curioso e instigante perceber como a voz, certamente
uma das coisas que temos como mais humana, mais imanente ao homem, é, por outro
lado, aquilo que mais se aproxima daquilo que se nos apresenta como o divino, o
transcendente.
A história da voz é uma coisa que
realmente me fascina, embora nunca tenha me dedicado a estudá-la. Se alguém
souber de algum material interessante nesse sentido, agradeço indicações.
Depois dessa breve digressão
sobre a voz, é a hora de abordarmos o ponto nevrálgico da discussão que esse
livro me despertou: o protagonismo.
A discussão sobre o protagonismo
está em praticamente todos os movimentos sociais na atualidade. O movimento
negro dz que são os negros que devem capitanear o movimento. O feminismo diz
que são as mulheres que devem propor a pauta das lutas e assumir a liderança de
suas atividades etc...
Ocorre que muitas das vezes, o
protagonismo das lutas vem acompanhado de um sentimento de quase exclusividade
do movimento, que repele os membros que não se equadram na categoria, na ‘minoria’,
na causa em si das lutas. Nesse sentido, há uma discussão enorme em curso no
movimento feminista se homens podem ou não se dizer feministas. O movimento
gay, por outro lado, não engendrou essa discussão (ao menos eu não me recordo):
subrepticiamente, o movimento GLS passou a se denominar LGBT e excluiu os
simpatizantes da sua luta.
Sobre esse assunto, minha opinião
é a de que protagonismo é importante. Mas é importante não destruir as pontes.
Mais do que isso, é importante ter aliados do lado de lá. Brancos racistas não
têm pudores em espalhar sua ideologia racista por entre brancos e negros. Por
outro lado, alguns negros acham que brancos devem ficar completamente apartados
da ideologia do movimento negro. (o verbo ‘apartar’ foi utilizado de forma
intencional).
Esse discurso parece reacionário,
mas vou tentar explicar porque (eu acho que) ele não é.
A abolição da escravatura foi
pensada, engendrada e levada a cabo por pessoas brancas. Isso não invalida nem
diminui a luta dos próprios negros na mesma direção. O Quilombo dos Palmares, a
Revolta dos Malês e a Revolução Haitiana são exemplos do protagonismo negro.
Mas é importante reconhecer quando, do outro lado, pessoas caminham na mesma
direção. Castro Alves, José Bonifácio e Rui Barbosa foram abolicionistas
brancos. A Princesa Isabel, o ovo da história (ora é do bem, ora é do mal; os
historiadores, assim como os nutricionistas, nunca se decidem), também foi
abolicionista branca.
Fico imaginando o que teria
acontecido se os escravos chegassem para o José Bonifácio e para o Castro Alves
e dissessem: ‘Cara, essa luta não é de vocês. Vocês não são bem-vindos aqui.’
Ou ainda, chegar pra Princesa Isabel e dizer: ‘Que absurdo! Você, branca,
querendo conceder alforria para todos os escravos. Não vai assinar nada! Ou
essa lei vai ser assinada pelos pretos, ou não vai ter droga de Lei Áurea
nenhuma!’
A menos que a coisa aconteça
pelas vias revolucionárias, como ocorreu no Haiti, onde todos os escravos da
ilha se rebelaram e proclamaram a independência do país, ou na revolução
comunista de 1917 na Rússia, é importante que os movimentos dialoguem com as
elites, mas mais do que isso, que tenha pessoas infiltradas lá.
Zumbi dos Palmares é importante,
mas Castro Alves também é. Pelas vias reformistas, se não aditirmos a revolução
(e acho que tenho me enquadrado um pouco nessa categoria), vai ter que ter
diálogo, não vai poder ter movimento fechado em si mesmo.
Nesse sentido, dá pra traçar um
paralelo interessante entre Castro Alves e Gregório Duvivier. Castro Alves,
assim como Gregório Duvivier era branco, bonito e talentoso. Ambos são poetas,
bons poetas, o que os torna aclamados pela crítica; dessa forma, eles têm passe
livre na intelectualidade. Ambos são libertários e de esquerda. A
intelligentsia consegue lidar com libertários de esquerda (desde que pertençam
à própria elite), mas o grande público, o ‘povo’, o ‘brasileiro médio’ é
conservador (essa é uma afirmação temerária, mas assumo o risco). Ambos
desenvolvem, então, uma estratégia muito parecida, para atingir esse público:
dar às pessoas o que elas querem ver, mas colocar lá a sua ideologia. Nesse
sentido, Castro Alves declamava em teatros e fazia com que seus poemas fossem
disseminados por entre cadernos de moças adolescentes. Essas pessoas que o
aplaudiam nos teatros não estavam lá porque eram abolicionistas: elas estavam
lá para ver um homem branco, bonito, elegante, da elite, que declamava seus
poemas de forma magistral. Só que esses poemas eram carregados de ideologia
abolicionista que, pouco a pouco, através desse artifício, iam penetrando nas
camadas populares. De modo semelhante, Gregório Duvivier aposta no humor e tem
um séquito de seguidores e espectadores em seu canal de vídeo no Youtube, o ‘Porta
dos Fundos’. As pessoas que clicam num vídeo do Porta dos Fundos não o fazem,
muitas das vezes, porque querem ver ‘um conteúdo de esquerda’. As dez milhões
de pessoas que assinam o canal clicam nos vídeos porque querem ver textos
bem-humorados, engraçados, intepretados por bons atores. Só que nesses três minutos
de cada vídeo, a equipe do Porta dos Fundos vai disseminando por entre as
pessoas, paulatinamente, uma ideologia libertária e de esquerda, apoiando
causas como a legalização da maconha, o aborto, a laicidade do estado, etc.
Dessa forma, ambos, Castro Alves e Gregório Duvivier, em seus devidos tempos
históricos, fazem parte da elite intelectual brasileira e se valem dessa
prerrogativa para fazer penetrar nas camadas populares uma ideologia de
empoderamento dessas camadas em relação à própria elite da qual fazem parte.
Entendo que isso vá de encontro
ás vivências de movimento social de muitas pessoas, mas de minha parte,
realmente acho que Castro Alves e Gregório Duviver são importantes, em seus
devidos tempos, como agentes das causas libertárias.
Mais uma vez, a menos que optemos
por uma via revolucionária, o que não faz a minha cabeça (por ora), é
importante que haja um homem branco, rico e heterossexual, que defenda os
direitos das mulheres, dos pobres, dos pretos e dos gays.
Sim, protagonismo é importante,
embora eu não esteja enfatizando muito esse ponto. Mas é importante entender
que os movimentos, assim como a vida, não é feita só de protagonismos. Acho que
os movimentos sociais não devem recusar alguém que tem o canal mais acessado do
Youtube no Brasil e uma coluna de jornal na Folha de São Paulo.
De minha parte, aceito o
abolicionismo de Castro Alves, aceito o posicionamento à esquerda do Gregório
Duvivier, aceito os homens feministas, aceito os simpatizantes. Aceito todo
mundo que vier contribuir para a construção de um mundo mais justo, mais
igualitário e que respeite as diferenças, independente de ser preto, branco,
pobre, rico, homem, gay, hétero, bi, trans, etc. Vivência é importante, penetração
nas camadas populares é importante, representação parlamentar também é importante
(alô Jean Wyllys!).
Tem que ter protagonista sim, mas
é só no diálogo com os coadjuvantes que a cena pode acontecer.
Obrigado, Castro Alves, por ter
sido um de nós sem o sê-lo; por ter sido a voz, ainda que com as distorções
provocadas pela fata de vivência, dos que não conseguiam se fazer ouvir.
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