segunda-feira, 29 de maio de 2017

A Ausência da Palavra

Gostei muito do filme como obra, diferentemente de 3%, que chamou mais atenção pelas discussões do argumento do que pelo resultado estético.
Ainda não assentaram em mim todas as impressões e veredas abertos pelo filme, faz pouco tempo que vi. Mas conforme o tempo passa, e conversando com algumas pessoas, acho que vale a pena pensar em alguns pontos.
Na primeira parte da história, chamada de Little, o apelido de Chiron na infância, fica evidente a falta de referência familiar. Não me lembro de em algum momento ter sido mencionado um pai, ou até mesmo uma avó. A única referência familiar é a mãe, que mostra ter problemas com drogas e nem sempre poder estar presente da maneira que o filho precisa, como para perceber que ele está sofrendo na escola e precisa de ajuda. O filme não mostra a mãe sendo convocada ou participando de uma reunião.

Nenhum estudo deixa de mostrar a importância da presença da família como índice de envolvimento na escola e de protetor contra vulnerabilidade social das crianças. A presença dos pais qualifica a infância na maior parte das vezes. Por isso eu acho que o transporte público não é só uma questão de facilitar a vida prática das pessoas e seus deslocamentos, mas uma ferramenta importantíssima na promoção de qualidade de vida para crianças e redução de desigualdade. Pode-se considerar o tempo gasto no trajeto do trabalho para casa um roubo de tempo de crianças que precisam de seus familiares.

Um detalhe que eu sempre reparo em muitos filmes de que gosto muito — principalmente daqueles de que descubro que gostei muito a posteriori —, é na riqueza de informações extra-diálogo. De cara, a ausência de personagens brancos salta aos olhos, mas jamais é posta em questão. Diferentemente disso, a ausência de diálogo é uma característica do personagem principal.

Chiron, ou Black ou Little, não tem na palavra sua principal forma de relação com o entorno. Juan (o traficante interpretado por Mahershala Ali, que fez o lobbyista Remy Danton em House of Cards) de alguma maneira percebe isso e resolve usar o Entorno per se, o que há de mais precoce e bonito de todos os entornos que a vida já teve — o mar. A água do mar, esse amnios ontológico inescapável, cria o meio de contato afetivo entre Chiron e o mundo, e sua referência, Juan. Juan desaparece do filme após cumprir este papel, deixando Theresa, a mulher que fica, como ponto de apoio para a criança.

Além da óbvia cadeirada, outro recurso não-verbal usado por Chiron para se relacionar com o mundo é o corpo. Os corpos têm esse papel para todos nós, embora uma cerebrização do modo como a humanidade ocidental se vê — o que talvez Winnicott* chamasse de supervalorização da mente em oposição ao psicossoma —, para Chiron vira uma estratégia de sobrevivência. Nada se fala do período entre a detenção pós-cadeirada na Flórida e como ele se estabeleceu traficante na Georgia, mas foi ali que ele saiu de um garoto franzino e assustado para se transformar em um homem corpulento, forte para aguentar o que a vida vai colocar em seu caminho. Que usa uma espécie de aparelho metálico no dente, talvez inicialmente pensado como ostentação, mas que dá impressão de força e resistência. Que ele tira quando vai comer perto do amigo.

A prisão é um destino frequente para pobres negros nos EUA, assim como no Brasil. Pelo jeito que o nome da prisão é mencionado na conversa (ou quase conversa) que Chiron tem com o amigo já mais velho, fiquei com a impressão de que era uma realidade muito próxima. Pode ser que muitos familiares de Chiron estivessem na prisão, e por isso não apareciam. Se Juan foi preso, nós não sabemos, mas se Theresa fosse presa, aí Chiron ia ficar ainda pior do que já estava.

Enfim, muitas outras veredas são abertas no filme, e certamente muitas mais só vou conseguir perceber quando assistir novamente a ele.


*pediatra e psicanalista inglês, morto nos anos 70. Psicossoma foi o nome que ele deu a um funcionamento conjunto da psique e do corpo (soma), em oposição à dualidade mente/corpo. Para ele, mente seria algo como o funcionamento racional do pensamento, afastado de sensibilidades e do corpo.

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