3% é uma série brasileira (acho
que é uma co-produção), cujo mote é a desigualdade social. Numa sociedade
hipotética, todos os cidadãos vivem em um continente em condições indignas de
vida, e almejam chegar a uma ilha, onde reinam a liberdade, a igualdade e a fraternindade,
e onde todos os serviços públicos funcionam.
Antes mesmo de ver a série,
imaginei que se tratasse de Florianópolis, cidade que ainda não conheço, mas
que sei que funciona nessa dicotomia entre uma ilha onde tudo funciona muito
bem, e o continente, onde fica a perfieria do município. Depois, pensei que
poderia se tratar da cidade de Belo Horizonte, cuja grelha original, que agrupa
do lado de dentro da Avenida do Contorno as zonas mais ricas e importantes da
cidade hoje, é responsável por exatos três por cento do tamanho da cidade, que
cresceu de forma desordenada além da Avenida do Contorno. (cf. Antonio Risério,
em ‘A cidade no Brasil’), Depois, ainda, pensei se tratar da Zona Sul da cidade
do Rio de Janeiro, que funciona como uma espécie de bolha de qualidade de
serviços públicos e de riqueza quando comparado ao restante da cidade: um
verdadeiro feudo, ou, ainda, o condomínio zona-sul.
Assistindo à série, da qual gostei
bastante, percebi que os paralelos a ser feitos poderiam, na verdade, ser
outros.
Na verdade, toda a série é
estruturada para caber em diversos tipos de metáforas da realidade. A começar
pelos nomes. Tudo tem um nome genérico, que significa a própria coisa. As
pessoas moram num continente chamado Continente, e devem passar por um processo
chamado Processo a fim de cruzar o alto-mar para chegar ao Maralto. Os que
discordam de tudo isso lutam por uma causa chamada de Causa. Essa ausência de
nomenclatura formal (ou a transformação em nome do próprio do que é apenas
substantivo comum) é um recurso estético que colabora para criar uma concepção
de arquétipo nos personagens e nos lugares e, que por isso mesmo, os torna mais
universais e mais interpretáveis de acordo com a realidade de cada um.
Dessa forma, a dicotomia
Continente-Maralto pode ser, de maneira simultânea, Florianópolis, Belo
Horizonte, Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade brasileira (eu diria todas)
nas quais a desigualdade social e socioespacial sejam uma questão relevante.
De maneira similar, o Processo
pode ser assimilado imediatamente como o vestibular ou um concurso público,
mas, de maneira menos imediata, também como um casamento, um intercâmbio, a
decisão de estudar/trabalhar na cidade grande e tudo o mais que tenha algum
significado histórico associado à rápida ascensão social de uma pessoa ou grupo
de pessoas, ao elevador da riqueza.
A Causa, por sua vez, pode estar
associada ao comunismo, à anarquia, aos grêmios estudantis e centros
acadêmicos, ao Fórum Social Mundial e a todo e qualquer movimento político que
tenha por propósito questionar ou subverter a ordem social vigente.
O Maralto, que praticamente não
aparece durante toda a série mantendo-se numa aura de mistério, pode ser
invocado como o Éden, o Paraíso, o Eldorado, esse lado de lá carregado de
promessas insondáveis que vão da vida eterna às setenta virgens e que todo
mundo quer, mas que ninguém sabe muito nem como nem porquê.
*** A PARTIR DAQUI, ESTE TEXTO
PODE CONTER SPOILERS ***
Quanto aos personagens, a série
contém muitos, uns mais cativantes do que outros, uns com interpretações
melhores do que outros, mas não quero fazer uma exegese de todos eles. Gostaria
de me concentrar em dois deles.
O primeiro deles é o Marco Alvarez
(Rafael Lozano). Marco é o jovem bem-nascido, que carrega consigo todos os
requisitos para carimbar o quanto antes o passaporte para a glória e o sucesso.
Ancorado na ideia de linhagem, Marco é aquele que estudou nas melhores escolas,
que teve o melhor preparo, todo o amor e todo o tempo do mundo para se dedicar
ao que há de mais importante em sua vida: O Processo.
Ele tem a tranquilidade que só
tem aquele que sabe ter sido feito do mais fino cristal. É delicado, valente,
esperto e, de alguma maneira, sagaz. Ele é branco, rico, bonito e sedutor, e
tem um sobrenome que o remete a uma família importante, de posses e de sucesso.
Ele sabe que nada pode dar errado.
O personagem de Marco lembra
muito o engenheiro que negocia a venda do apartamento de Clara, no filme
Aquarius. Ele é obstinado com o sucesso, tem sangue nos olhos, não tem dúvida
de que o mundo tem que se prostrar aos seus pés e que os mares se devem abrir à
sua passagem.
Senti uma alegria quando ele
morreu. Nunca funcionei pela lógica do sobrenome e, quando ele morre e não
continua no processo, senti a alegria revolocionária de ver as cabeças da
nobreza rolando, de ver todos aqueles sobrenomes empolados sendo convertidos no
que há de mais material, o sangue seco, inerte, que não distingue os nobres dos
plebeus e os mescla na mesma carnificina de guilhotina, anárquica, e que só
choca porque é a primeira vez desde sempre que se vê a morte violenta ser
exercida de maneira democrática, para todos.
A outra personagem, Joana, é
completamente cativante (ao menos para mim), embora ela tenha sido desenhada
para ser blasé. É uma personagem mal construída, no geral, pouco crível.
Joana é uma mulher pobre, negra,
que vem de um passado de privações e traumas. Isso se resulta no presente em um
comportamento arredio e de baixa expressividade (muito bem interpretado pela atriz,
Vaneza Oliveira; deve ser bem desafiador interpretar um personagem pouco
expressivo). Mas Joana é um gênio; é inteligentíssima (e também é linda).
Nas provas que se desenrolam n’O
Processo, Joana sempre tem um comportamento de destaque. Dobrando o mundo a seu
favor, Joana chega a confundir a banca de avaliação, que não espera resultados
tão positivos. No desafio do cubo, em que todos deveriam fazer dez cubos, a
maior parte não consegue, mas Joana faz doze. No desafio da descrição da sala,
Joana aponta que a moça que compõe a cena é cega, o que contribui sobremaneira
para a resposta final da prova em grupo.
Mas a coisa fica boa mesmo na
prova dos Jogos Mortais. Enquanto todos brigam entre si, pesquisando as formas
certas de lutar e de jogar, Joana procura um caminho alternativo e sobe por uma
tubulação. Ao final do tubo, Joana encontra a banca de avaliação.
Esse espisódio confirma a
presença de Joana como uma espécie de semideus na série. Enquanto todos se
preocupam com o terreno, Joana acede aos céus (sobe o cano), e encontra Deus (Emanuel
e a banca de avaliação). De cima, ela vê tudo, tem a visão divina de tudo que
acontece na Terra. Então, como um anjo (ou como Jesus, se preferirem), ela é
instada a descer à Terra e resolver os problemas dos homens. E Joana desce à
Terra, novamente. E, como num milagre, ela diz ‘Podem parar agora’, e todos
param. É como se nesse momento a condição divina de Joana ficasse patente não
só para ela e para os de cima, como também para os outros. A partir desse
episódio, Joana é um ser que transita por ambos os mundos; sua condição a
coloca nesse papel meio anjo, meio Jesus Cristo.
Já no último episódio,
sustentando sua condição divina, Joana aos pés do Maralto é impedida de
adentrar no Paraíso. Emanuel (Deus), certamente por inveja do brilho da jovem
Joana, cria uma situação em que ela precise se mostrar humana (confessar-se
assassina) em prol dos benefícios do paraíso. Ela, como alguém que não é deste
mundo, mantém sua postura ética/heroica/divina e não comete o pecado que seria
necessário à sua entrada no Maralto. Sua entrada no paraíso seria,
simbolicamente, a condenação do resto da humanidade. É aí que entra a cena
final da primeria temporada, essa cena linda. Joana redime toda a humanidade. Nega
para si os benefícios do paraíso, e aceita a condição humana/terrena.
Despertando a ira dos deuses (e aqui já num papel que se assemelha mais ao
heroísmo de Ulisses, da Odisséia), Joana, por ser a mais bela e a mais
inteligente, decide trilhar seu próprio caminho no Continente, e mais, blasfema
contra o Processo.
Surfando na membrana mitológica
que separa os deuses dos homens, Joana encarna encantadoramente esse papel que
é, simultaneamente Jesus Cristo, Lúcifer, Anjo, Exu, Ulisses.
Joana insere a magia na
discussão, e traz um aspecto mágico/simbólico que está sempre presente, mesmo
na mais cartesianas das lógicas.
O mundo, quem diria, talvez
jamais esteja farto de semideuses.
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