domingo, 5 de março de 2017

A redenção de Joana



3% é uma série brasileira (acho que é uma co-produção), cujo mote é a desigualdade social. Numa sociedade hipotética, todos os cidadãos vivem em um continente em condições indignas de vida, e almejam chegar a uma ilha, onde reinam a liberdade, a igualdade e a fraternindade, e onde todos os serviços públicos funcionam.

Antes mesmo de ver a série, imaginei que se tratasse de Florianópolis, cidade que ainda não conheço, mas que sei que funciona nessa dicotomia entre uma ilha onde tudo funciona muito bem, e o continente, onde fica a perfieria do município. Depois, pensei que poderia se tratar da cidade de Belo Horizonte, cuja grelha original, que agrupa do lado de dentro da Avenida do Contorno as zonas mais ricas e importantes da cidade hoje, é responsável por exatos três por cento do tamanho da cidade, que cresceu de forma desordenada além da Avenida do Contorno. (cf. Antonio Risério, em ‘A cidade no Brasil’), Depois, ainda, pensei se tratar da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, que funciona como uma espécie de bolha de qualidade de serviços públicos e de riqueza quando comparado ao restante da cidade: um verdadeiro feudo, ou, ainda, o condomínio zona-sul.

Assistindo à série, da qual gostei bastante, percebi que os paralelos a ser feitos poderiam, na verdade, ser outros.

Na verdade, toda a série é estruturada para caber em diversos tipos de metáforas da realidade. A começar pelos nomes. Tudo tem um nome genérico, que significa a própria coisa. As pessoas moram num continente chamado Continente, e devem passar por um processo chamado Processo a fim de cruzar o alto-mar para chegar ao Maralto. Os que discordam de tudo isso lutam por uma causa chamada de Causa. Essa ausência de nomenclatura formal (ou a transformação em nome do próprio do que é apenas substantivo comum) é um recurso estético que colabora para criar uma concepção de arquétipo nos personagens e nos lugares e, que por isso mesmo, os torna mais universais e mais interpretáveis de acordo com a realidade de cada um.

Dessa forma, a dicotomia Continente-Maralto pode ser, de maneira simultânea, Florianópolis, Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou qualquer outra cidade brasileira (eu diria todas) nas quais a desigualdade social e socioespacial sejam uma questão relevante.

De maneira similar, o Processo pode ser assimilado imediatamente como o vestibular ou um concurso público, mas, de maneira menos imediata, também como um casamento, um intercâmbio, a decisão de estudar/trabalhar na cidade grande e tudo o mais que tenha algum significado histórico associado à rápida ascensão social de uma pessoa ou grupo de pessoas, ao elevador da riqueza.

A Causa, por sua vez, pode estar associada ao comunismo, à anarquia, aos grêmios estudantis e centros acadêmicos, ao Fórum Social Mundial e a todo e qualquer movimento político que tenha por propósito questionar ou subverter a ordem social vigente.

O Maralto, que praticamente não aparece durante toda a série mantendo-se numa aura de mistério, pode ser invocado como o Éden, o Paraíso, o Eldorado, esse lado de lá carregado de promessas insondáveis que vão da vida eterna às setenta virgens e que todo mundo quer, mas que ninguém sabe muito nem como nem porquê.

*** A PARTIR DAQUI, ESTE TEXTO PODE CONTER SPOILERS ***

Quanto aos personagens, a série contém muitos, uns mais cativantes do que outros, uns com interpretações melhores do que outros, mas não quero fazer uma exegese de todos eles. Gostaria de me concentrar em dois deles.

O primeiro deles é o Marco Alvarez (Rafael Lozano). Marco é o jovem bem-nascido, que carrega consigo todos os requisitos para carimbar o quanto antes o passaporte para a glória e o sucesso. Ancorado na ideia de linhagem, Marco é aquele que estudou nas melhores escolas, que teve o melhor preparo, todo o amor e todo o tempo do mundo para se dedicar ao que há de mais importante em sua vida: O Processo.

Ele tem a tranquilidade que só tem aquele que sabe ter sido feito do mais fino cristal. É delicado, valente, esperto e, de alguma maneira, sagaz. Ele é branco, rico, bonito e sedutor, e tem um sobrenome que o remete a uma família importante, de posses e de sucesso. Ele sabe que nada pode dar errado.

O personagem de Marco lembra muito o engenheiro que negocia a venda do apartamento de Clara, no filme Aquarius. Ele é obstinado com o sucesso, tem sangue nos olhos, não tem dúvida de que o mundo tem que se prostrar aos seus pés e que os mares se devem abrir à sua passagem.

Senti uma alegria quando ele morreu. Nunca funcionei pela lógica do sobrenome e, quando ele morre e não continua no processo, senti a alegria revolocionária de ver as cabeças da nobreza rolando, de ver todos aqueles sobrenomes empolados sendo convertidos no que há de mais material, o sangue seco, inerte, que não distingue os nobres dos plebeus e os mescla na mesma carnificina de guilhotina, anárquica, e que só choca porque é a primeira vez desde sempre que se vê a morte violenta ser exercida de maneira democrática, para todos.

A outra personagem, Joana, é completamente cativante (ao menos para mim), embora ela tenha sido desenhada para ser blasé. É uma personagem mal construída, no geral, pouco crível.

Joana é uma mulher pobre, negra, que vem de um passado de privações e traumas. Isso se resulta no presente em um comportamento arredio e de baixa expressividade (muito bem interpretado pela atriz, Vaneza Oliveira; deve ser bem desafiador interpretar um personagem pouco expressivo). Mas Joana é um gênio; é inteligentíssima (e também é linda).

Nas provas que se desenrolam n’O Processo, Joana sempre tem um comportamento de destaque. Dobrando o mundo a seu favor, Joana chega a confundir a banca de avaliação, que não espera resultados tão positivos. No desafio do cubo, em que todos deveriam fazer dez cubos, a maior parte não consegue, mas Joana faz doze. No desafio da descrição da sala, Joana aponta que a moça que compõe a cena é cega, o que contribui sobremaneira para a resposta final da prova em grupo.

Mas a coisa fica boa mesmo na prova dos Jogos Mortais. Enquanto todos brigam entre si, pesquisando as formas certas de lutar e de jogar, Joana procura um caminho alternativo e sobe por uma tubulação. Ao final do tubo, Joana encontra a banca de avaliação.

Esse espisódio confirma a presença de Joana como uma espécie de semideus na série. Enquanto todos se preocupam com o terreno, Joana acede aos céus (sobe o cano), e encontra Deus (Emanuel e a banca de avaliação). De cima, ela vê tudo, tem a visão divina de tudo que acontece na Terra. Então, como um anjo (ou como Jesus, se preferirem), ela é instada a descer à Terra e resolver os problemas dos homens. E Joana desce à Terra, novamente. E, como num milagre, ela diz ‘Podem parar agora’, e todos param. É como se nesse momento a condição divina de Joana ficasse patente não só para ela e para os de cima, como também para os outros. A partir desse episódio, Joana é um ser que transita por ambos os mundos; sua condição a coloca nesse papel meio anjo, meio Jesus Cristo.

Já no último episódio, sustentando sua condição divina, Joana aos pés do Maralto é impedida de adentrar no Paraíso. Emanuel (Deus), certamente por inveja do brilho da jovem Joana, cria uma situação em que ela precise se mostrar humana (confessar-se assassina) em prol dos benefícios do paraíso. Ela, como alguém que não é deste mundo, mantém sua postura ética/heroica/divina e não comete o pecado que seria necessário à sua entrada no Maralto. Sua entrada no paraíso seria, simbolicamente, a condenação do resto da humanidade. É aí que entra a cena final da primeria temporada, essa cena linda. Joana redime toda a humanidade. Nega para si os benefícios do paraíso, e aceita a condição humana/terrena. Despertando a ira dos deuses (e aqui já num papel que se assemelha mais ao heroísmo de Ulisses, da Odisséia), Joana, por ser a mais bela e a mais inteligente, decide trilhar seu próprio caminho no Continente, e mais, blasfema contra o Processo.

Surfando na membrana mitológica que separa os deuses dos homens, Joana encarna encantadoramente esse papel que é, simultaneamente Jesus Cristo, Lúcifer, Anjo, Exu, Ulisses.

Joana insere a magia na discussão, e traz um aspecto mágico/simbólico que está sempre presente, mesmo na mais cartesianas das lógicas.

O mundo, quem diria, talvez jamais esteja farto de semideuses.

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