O tema é
meritocracia, as semelhanças entre um futuro distópico e o Brasil de hoje são
um chamado à reflexão. Esse é o mote da série "3%". Os personagens devem passar
por uma seleção para saírem de um lugar onde levam uma vida ruim para outro
onde existe uma vida completamente feliz. A estética da série é interessante, o
“lado de cá”, onde se vive mal, é retratado como parecido com as periferias
brasileiras. As pessoas vestem trapos rasgados, circulam por becos sujos, por
entre barracos. Já o “lado de lá”, chamado Maralto, é um local com tecnologia
avançada, retratada pelo ambiente estéril e “clean” do local onde ocorre o
processo de seleção, uma espécie de embaixada do lado feliz, contrastando com a
pobreza.
Apesar da
superioridade tecnológica e da suposta superioridade geral das pessoas do “lado
de lá”, o local do processo parece pouco agradável, com toda a luz artificial,
as roupas de cores frias, poucos itens de decoração e poucas plantas. Na verdade,
pelo aspecto da cenografia, o “lado de cá” parece até mais agradável que o
local do processo, porque pelo menos se vive ao ar livre.
A série conta
com atores negros em número maior do que o que estamos habituados a ver nas
produções brasileiras em geral. Há poucos personagens com traços indígenas ou
que lembrem os nordestinos e muitos brancos com traços europeus, numa espécie
de retrato da classe média do sudeste brasileiro, acrescentada de negros.
Observei que mesmo vestindo trapos, os personagens do lado pobre aparecem com
barbas e cabelos bem cortados e dentes bonitos. Achei os atores muito bons, porém
eles foram postos para representar personagens um tanto caricatos, embora
vários personagens adquiram maior complexidade ao longo dos episódios.
Algumas coisas
são mal explicadas, como por exemplo, qual a relação entre esses dois mundos
retratados? Tirando alguns detalhes como presença de alguns personagens armados
e de uma personagem aparentemente usando bebida alcóolica, faltam mais
informações sobre a vida no “lado de cá”. Não fica claro também quem divulga
informações sobre o processo ou quem governa os lados. Fala-se num tal casal
fundador, que teria criado esse mundo superior e existe uma reverência
religiosa a esse casal, inclusive com cultos. Não aparece trabalho, escola,
artes ou outros aspectos da vida no lado de lá. Parece haver famílias
heteronormativas e pseudomonogâmicas, como a “família tradicional brasileira”.
O que sabemos é que do lado pobre existem dois sentimentos muito fortes:
insatisfação com a vida que se leva e esperança de viver uma vida melhor “do
lado de lá”. O processo de seleção é uma espécie de vestibular, acontece sempre
que os jovens fazem 20 anos, e só existe uma chance. Aos reprovados a única
esperança que existe é fazer com que seus filhos passem no processo.
Aliás, nesse
sentido, o processo mostrado na série é interessante, por que oferece a todos a
mesma oportunidade de estar no Maralto e considera que todos são iguais e vivem
numa mesma irmandade, tanto que os que venceram o processo não podem ter
filhos. Se eles tivessem filhos, isso seria acreditar que, por terem nascido de
pais virtuosos, os filhos também seriam necessariamente virtuosos e merecedores
da felicidade. Ao deixar que todos os
seus companheiros na vida feliz sejam gerados por membros da vida infeliz, a
mensagem passada pelos que criaram o processo é: vocês perderam a competição,
são inferiores, mas os filhos de vocês podem ser superiores e nós os aceitamos
juntos de nós. E mais, é como se dissessem: nós não acreditamos que ser
virtuosos nos fará gerar filhos virtuosos, não somos virtuosos por nenhuma
característica biológica passível de ser herdada. É como uma espécie de negação
radical da eugenia. Ao mesmo tempo, essas pessoas abrem mão de viver com
crianças, já que os mais jovens da comunidade terão 20 anos. E mais: eles abrem
mão de eles próprios educarem as crianças para serem virtuosas. É como se
houvesse também uma total negação da
Pedagogia e uma transferência da educação toda para o lado pobre. Mas, e aí?
Existem educadores atravessando do Maralto para o lado pobre? Não se sabe.
Sobre a vida
no Maralto, parece haver uma desinformação generalizada no “lado de cá” sobre o
“lado de lá”. Nem os personagens que vivem do lado ruim e nem os expectadores
chegam a saber o que acontece de fato nesse suposto paraíso na Terra. Os
personagens ficam apenas com uma promessa de vida feliz. Alguns moradores do
lado pobre se mostram revoltados e buscam realizar atos destrutivos contra o
processo, de forma pouco organizada e com pouco sucesso.
A série peca
em alguns momentos por falta de realismo na composição psicológica dos
personagens. O trecho em que os candidatos ficam confinados e precisam
conseguir comida e água me lembrou um pouco o experimento da prisão Stanford,
porém houve exagero, não pareceu verossímil. Apesar disso, a série é boa em
geral, não empolga em excesso, mas superou minhas expectativas iniciais.
Os dois
sentimentos norteadores da vida no “lado de cá” são bem conhecidos do povo
brasileiro em geral: insatisfação e
esperança numa vida melhor. Na verdade, todo o sistema capitalista tem na ideia
de Meritocracia um dos pontos fortes de sua ideologia. Vou usar Meritocracia
aqui com o seguinte sentido: a ideia é que toda pessoa, independentemente de
sua classe social de origem, desde que se esforce o suficiente, pode ter
sucesso e obter qualquer ganho material que desejar. Analisando do ponto de
vista sociológico, é claro que as chances de alguém conseguir chegar ao topo da
pirâmide social partindo de baixo é muito pequena, de modo que julgar que o
capitalismo é justo a partir de alguns exemplos de pessoas que constituem
exceção à regra mostra alto grau de miopia. Mas o fato é que a Meritocracia
pode ser uma ideia alentadora que dá esperança a muita gente.
É claro que
essa esperança não é dada a todos e nem é igual em todos os países e em todas
as épocas. Eu me lembro bem de uma conversa que tive com um amigo francês em
2010. Ele disse que uma coisa que admirava no Brasil era a esperança que as
pessoas tinham no futuro. Para ele, aqui as pessoas viviam entusiasmadas,
enquanto na França as pessoas eram cínicas. Ao mesmo tempo, ele também
observava outro contraste: aqui as possibilidades de ascensão social eram quase
inexistentes, ao contrário da França. Eu lembro que na época discordei, dizendo
que eu mesma era exemplo de alguém que havia tido uma ascensão social e ele
disse que isso era porque eu era muito esperta, mas não era algo comum. Lembro
também que eu não consegui entender o que ele quis dizer quando citou o cinismo
da vida na França. Curiosamente, hoje consigo entender perfeitamente, porque
estamos numa fase assim no Brasil. Somos um país atrasado, onde tudo chega
depois. Parece que a crise chegou depois aqui também. Hoje também já entendo a
crítica que ele fez sobre a nossa pouca mobilidade social. Na verdade, creio
que essa mobilidade tem mais a ver com classe média e é sempre mais difícil
para os miseráveis. Eu não saí da miséria, apenas fui a primeira médica da
família.
Eu citei a
impressão que eu já tive sobre Meritocracia para lembrar algo que nem sempre é
lembrado quando se discute esse tema: o conceito de sucesso é muito pessoal e
depende da situação social de onde a pessoa parte. O crescimento econômico
parece aumentar em todos os lugares o número de pessoas que compõe a classe
média e a classe média possui suas gradações (classe média baixa, classe média
alta). Ou seja, na vida real não existe, como há na série, um tudo ou nada, não
existem dois lados e sim muitos lados. E isso é um grande reforçador do
discurso da Meritocracia. Muitas pessoas têm em sua vida real exemplos de
alguém que passou de muito pobre para pouco pobre, de pobre para classe média
baixa e etc. Um filho de pais analfabetos que teve o mérito de terminar o
ensino fundamental, o filho de um trabalhador que ganha salário mínimo que teve
o mérito de fazer um curso técnico, o filho de um técnico que conseguiu
terminar um curso superior, todas essas pessoas se consideram vitoriosas, todas
“passaram no processo”. De certa forma, na prática, o curso técnico do filho do
gari com certeza gera mais satisfação que o diploma universitário do filho do
médico. O filho do médico não fez mais que sua obrigação, já o filho do gari
realizou o sonho de toda a sua família.
Como então um
burguês de família rica quer convencer aquele filho de gari de que não existe
Meritocracia? Por acaso ele está fazendo
pouco caso da vitória desse pobre? Logo esse filho de gari que cresceu na
comunidade violenta e fez a difícil escolha de ser evangélico ao invés de
traficante. Logo esse filho do gari que precisou de muita fé na vida para
resistir ao uso de drogas, para seguir disciplinado estudando e trabalhando.
Como um playboy agora vem dizer que esse filho do gari está errado, alienado,
enganado; que ele não deveria se orgulhar, que ele não deveria acreditar num
futuro melhor, porque ele é explorado pelo capitalismo? Logo esse filho de gari
que não teve a opção de fumar maconha só para relaxar numa bela cachoeira numa
quarta-feira; de encher a cara de bebida, voltar para casa e estar tudo
tranquilo; de experimentar cocaína só uma vez e depois não querer mais porque
ele tem coisas mais interessantes para lhe dar prazer. Não esse filho de gari
não teve essa escolha, ou ele optava pela igreja, pela disciplina e liberava
sua tensão cantando louvores ou ele iria cair na tentação de acender aquele
cigarro de maconha toda vez que visse seus pais chorando porque estão doentes e
não tem médico no posto, ou toda vez que tivesse um tiroteio no bairro e algum
amigo ou primo aparecesse morto. Com que direito as pessoas bem nascidas,
enfadadas com sua vida medíocre que não vai para frente nem para trás, apontam
o dedo para esses vitoriosos e tentam convencê-los de que eles não estão “do
lado de lá”?
Acho que a
discussão sobre Meritocracia deve partir primeiramente dessa consideração. Não
existem dois lados na vida real, existem muitos lados, muitas histórias, muitas
vitórias escondidas em coisas simples. Por isso há de se ter certo cuidado
quando se nega a Meritocracia, as pessoas sempre tendem a discordar de ideias
generalizantes com exemplos particulares. É importante pensar nos lugares de
escuta, tanto quanto nos nossos lugares de fala. Escutar que Meritocracia é
falácia quando se vive em meio a pequenos grandes sucessos pode não ser fácil.
A pessoa pode tender a simplesmente não escutar.
Pensando na
série e na semelhança que o processo tem com o vestibular, não pude deixar de
lembrar que quando eu fiz meu vestibular para Medicina o número de candidatos
por vaga era justamente 33, ou seja, eu literalmente fiz parte dos 3%. Fui
pesquisar no Google e descobri que até que que eu tive sorte na época, porque
em 2017, a relação candidato/vaga na USP foi próxima a 70 e na UERJ próxima a
90 para o curso de Medicina!
Lembrei também
da discussão recente sobre a moça que ficou em primeiro lugar em Medicina na
USP. Ela, que é negra, disse que “a casa grande pira quando a senzala vira
médica” e, claro, deu no Catraca Disney que ela “gerou polêmica”. Algumas
pessoas diziam que ela deveria se orgulhar do próprio mérito ao invés de ter um
discurso tão, digamos, revoltado. Outros diziam que ela era uma exceção e que
Meritocracia é falácia. O fato é que ninguém precisa abrir mão de enxergar o
particular para enxergar a sociologia e a menina pode ficar com as duas coisas:
seu mérito particular e sua visão crítica que explica por que ela é sim uma
exceção.
Porém, além da
crença na Meritocracia, o que me incomoda de fato nessa discussão é que, ainda que suponhamos que de fato Meritocracia exista e todos, do filho do miserável ao
filho do milionário, tenham a mesma possibilidade de enriquecer; ainda que suponhamos que
haja de fato uma igualdade no processo de competição; talvez o questionamento
mais importante não esteja sendo feito: por que devemos viver em constante
competição uns com os outros? Por que devemos viver num mundo de suposta
escassez? Lutamos pelas poucas vagas em faculdades e pelos poucos empregos
bons. Lembrei da cena do filme “Eu, Daniel Blake” em que ele vai assistir,
junto com outros desempregados, uma aula sobre como criar um currículo
atrativo, e o professor cita que existem dezenas de aspirantes para cada vaga
de emprego. Devemos achar isso natural? Devemos nos conformar que sempre o
planeta impôs desafios a todas as formas de existência de modo que apenas as
mais adaptadas sobrevivem? Devemos então abraçar um darwinismo social e
conceber a sociedade como uma selva de pedra em que não há lugar ao sol para
todos?
Parece fazer
sentido a tese de que os povos lutaram ao longo dos séculos para obter recursos
escassos. Porém, é importante dizer que admitir a competitividade como algo
natural do ser humano não significa admitir o capitalismo como natural. A
competitividade talvez seja tão natural quanto a solidariedade e o senso de
cooperação. O capitalismo se fortalece muito com o discurso da Economia como
ciência mais ou menos exata e autônoma. Só que o capitalismo é um instrumento
de perpetuação da colonização de uns povos por outros e precisa ser superado.
Desconstruir alguns de seus mitos é um passo fundamental para isso, de modo que
a série “3%”, apesar de alguns defeitos, ao nos fazer criticar a Meritocracia,
teve sim seu mérito.
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