domingo, 5 de março de 2017

É Preciso Falar Sobre Desigualdade.



Antes de tudo, acho necessário chamar atenção para a importância de a questão da desigualdade ser abordada, sem meias palavras ou ângulos oblíquos. Três por cento não é sobre outra coisa senão a desigualdade. Todo o desenvolvimento da série parte daí.

Um dos desdobramentos de qualquer discussão sobre desigualdade é a questão da ascensão, ou seja, como faz para sair da posição desfavorecida para a privilegiada. Na série, todos pretendem que seja por mérito. Ora, como são definidos os parâmetros desse mérito? O tal “processo”, que é o “processo seletivo” para a inclusão na sociedade privilegiada de Maralto, se pretende perfeito e impessoal. Logo no começo essa impessoalidade se mostra falsa, pois  muitas decisões são tomadas diretamente pelo coordenador do processo, Emanuel. E ao longo dos episódios aparecem inúmeras imperfeições e distorções na seleção.

Outro ponto que me chamou a atenção foram as avaliações. O conselheiro comenta com Emanuel que ele tem de fazer modificações na seleção, pois os selecionados vindos do processo comandado por ele tendem a dar mais problemas que os outros. Isso significa dizer que há, em Maralto, alguma avaliação constante de seus cidadãos. E que isto é correlacionado com o processo seletivo que os escolheu. Há também problemas em Maralto.

Inicialmente procurei captar na série algum viés, seja favorável, seja desfavorável à meritocracia ou à desigualdade. Depois desisti. Concluí que é melhor entendê-la como um grande estímulo a refletir sobre os múltiplos ângulos possíveis. O processo, Maralto e a Causa são mostrados de maneira a ora ganhar nossa simpatia, ora antipatia.

Os candidatos usam métodos injustos ou frontalmente desonestos para avançar na seleção. O método mais usado na nossa sociedade, no entanto fica de fora da abordagem da série. No nosso mundo atual, a principal maneira de enriquecer é ter nascido em família rica. O segundo é casar com alguém rico. Nem o nascimento nem o casamento são abordados em 3%. En passant, a família do personagem Marco é retratada como bem sucedida por diversas gerações em enviar seus filhos a Maralto. O mérito corre no sangue. Os privilegiados de Maralto também não têm filhos. Quem os tem, deve abandoná-los para ascender. Diferentemente dos privilegiados de nosso tempo, a elite de 3% estimula oficialmente os desfavorecidos a se reproduzirem.  

A Causa ganhou imediatamente minha simpatia, por tratar-se de guerrilha urbana de propósitos igualitários. Mas a conversa de Emanuel com Michele coloca dúvidas na idoneidade da organização e seus métodos. Até mesmo os objetivos não ficam muito claros, como se querem destruir Maralto, o processo ou fundar uma nova sociedade.

Em uma sociedade tão injusta, quanto de violência é justo aplicar para promover mudanças? Em minhas reflexões pessoais há um pêndulo. Minhas opiniões oscilam da revolução à reforma e vice-versa. A classe de privilegiados é muito poderosa, e esse poder é usado para perpetuar estes privilégios. Não me parece possível convencer toda uma classe a abrir mão deles. Os privilégios são considerados direitos. E, o mais perverso de tudo, é apresentar estes privilégios / direitos como conquista de um mérito pessoal, ignorando todo o entorno presente e histórico que constrói a estratificação das pessoas. Diferentemente do proletariado do século XIX, que podia entender que apenas a união dos trabalhadores poderia trazer mudança à situação miserável em que viviam, hoje essa mudança é vista como possível apenas no plano individual. Cada pessoa deve perseguir seu objetivo de vida, enriquecer. As companhias não têm mais empregados, e sim colaboradores. Se você não se ferra pela companhia, você não tem ambição, não quer crescer, portanto não tem o direito a um ganho digno ou a subir na vida. Eu encaro este ponto do neo-taylorismo como sendo um dos mais eficazes contra a mobilização dos trabalhadores. Cada trabalhador vira competidor contra o outro. Dessa forma fica impossível a conquista de direitos ou mesmo, como vivemos hoje, a manutenção dos já conquistados.

Daí então me pergunto, que reforma é possível se os meios políticos para uma mudança pacífica estão sequestrados pelos poderosos? Em uma sociedade onde a mídia de maneira muito eficaz põe a culpa da crise na vítima? Essa mesma mídia vende a desigualdade como algo bom e necessário, pois assim cada um tem o que merece. Será que os pobres não percebem o tamanho da injustiça?

No século XIX a pobreza era percebida como uma questão de nascimento, se você não nasceu em família rica, já era, vai ser pobre para sempre. A partir de algum momento passou a ser possível, então , lutar contra esta injustiça, pois ela era assim percebida. Hoje não. Hoje o pobre é pobre porque não se esforçou o suficiente, pois eu conheço uma pessoa que passou no vestibular para medicina estudando em livros que encontrou no lixo. A injustiça do sistema “pivotou” para a indolência do indivíduo.

Nessas horas fico imaginando ser impossível mudar isso sem uma ruptura grave, a chamada Revolução. No entanto, é difícil imaginar como uma revolução seria capaz de provocar  mudanças tão profundas a ponto de uma sociedade que se quer desigual passar e se aceitar como equânime. Aí vem então meu lado reformista. Devemos fazer a sociedade se perceber como injusta e desigual e produzir meios para promover mais justiça para seus membros.

Ao longo da História a vida de cada um dos indivíduos, no Ocidente, tem se tornado cada vez mais importante. Cria-se então um paradoxo, pois as vidas dos desfavorecidos era simplesmente gasta para produzir conforto para os poderosos. Mas se, agora, ele precisa ter mérito e força de vontade e ambição, em algum momento ele pode não mais aceitar ser “gasto” dessa forma. E aí?

Como apontou o Piketty, estamos vivendo um momento histórico em que as desigualdades de renda e patrimônio são comparáveis à da Europa no fim do século XIX. Todas as vezes em que se chegou a este ponto, houve uma grande ruptura no tecido social. No caso do fim do século XIX, as grandes guerras. No caso de hoje, o que podemos esperar? Me questiono se é possível que haja essa ruptura, quando meios de comunicação em massa estão muito afinados em promover, de maneira muito eficaz, a aceitação das injustiças como inevitáveis e até mesmo como desejáveis. Talvez nem mesmo a ruptura seja desejável, pois ela, em alguns momentos, levou não diretamente à construção de uma sociedade mais justa, mas a ditaduras excludentes.

Não é possível definir a série como otimista ou pessimista nesse sentido. De qualquer maneira, um Brasil onde 3% podem chegar ao grupo dos privilegiados já pode ser considerado mais justo do que o nosso país atual.


  

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