Antes de tudo, acho necessário
chamar atenção para a importância de a questão da desigualdade ser abordada,
sem meias palavras ou ângulos oblíquos. Três por cento não é sobre outra coisa senão
a desigualdade. Todo o desenvolvimento da série parte daí.
Um dos desdobramentos de qualquer
discussão sobre desigualdade é a questão da ascensão, ou seja, como faz para
sair da posição desfavorecida para a privilegiada. Na série, todos pretendem
que seja por mérito. Ora, como são definidos os parâmetros desse mérito? O tal “processo”,
que é o “processo seletivo” para a inclusão na sociedade privilegiada de
Maralto, se pretende perfeito e impessoal. Logo no começo essa impessoalidade
se mostra falsa, pois muitas decisões
são tomadas diretamente pelo coordenador do processo, Emanuel. E ao longo dos
episódios aparecem inúmeras imperfeições e distorções na seleção.
Outro ponto que me chamou a
atenção foram as avaliações. O conselheiro comenta com Emanuel que ele tem de
fazer modificações na seleção, pois os selecionados vindos do processo
comandado por ele tendem a dar mais problemas que os outros. Isso significa
dizer que há, em Maralto, alguma avaliação constante de seus cidadãos. E que
isto é correlacionado com o processo seletivo que os escolheu. Há também
problemas em Maralto.
Inicialmente procurei captar na
série algum viés, seja favorável, seja desfavorável à meritocracia ou à
desigualdade. Depois desisti. Concluí que é melhor entendê-la como um grande
estímulo a refletir sobre os múltiplos ângulos possíveis. O processo, Maralto e
a Causa são mostrados de maneira a ora ganhar nossa simpatia, ora antipatia.
Os candidatos usam métodos
injustos ou frontalmente desonestos para avançar na seleção. O método mais
usado na nossa sociedade, no entanto fica de fora da abordagem da série. No
nosso mundo atual, a principal maneira de enriquecer é ter nascido em família
rica. O segundo é casar com alguém rico. Nem o nascimento nem o casamento são
abordados em 3%. En passant, a
família do personagem Marco é retratada como bem sucedida por diversas gerações
em enviar seus filhos a Maralto. O mérito corre no sangue. Os privilegiados de
Maralto também não têm filhos. Quem os tem, deve abandoná-los para
ascender. Diferentemente dos privilegiados de nosso tempo, a elite de 3%
estimula oficialmente os desfavorecidos a se reproduzirem.
A Causa ganhou imediatamente
minha simpatia, por tratar-se de guerrilha urbana de propósitos igualitários.
Mas a conversa de Emanuel com Michele coloca dúvidas na idoneidade da organização
e seus métodos. Até mesmo os objetivos não ficam muito claros, como se querem
destruir Maralto, o processo ou fundar uma nova sociedade.
Em uma sociedade tão injusta,
quanto de violência é justo aplicar para promover mudanças? Em minhas
reflexões pessoais há um pêndulo. Minhas opiniões oscilam da revolução à
reforma e vice-versa. A classe de privilegiados é muito poderosa, e esse poder
é usado para perpetuar estes privilégios. Não me parece possível convencer toda
uma classe a abrir mão deles. Os privilégios são considerados direitos. E, o
mais perverso de tudo, é apresentar estes privilégios / direitos como conquista
de um mérito pessoal, ignorando todo o entorno presente e histórico que
constrói a estratificação das pessoas. Diferentemente do proletariado do século
XIX, que podia entender que apenas a união dos trabalhadores poderia trazer
mudança à situação miserável em que viviam, hoje essa mudança é vista como
possível apenas no plano individual. Cada pessoa deve perseguir seu objetivo de
vida, enriquecer. As companhias não têm mais empregados, e sim colaboradores.
Se você não se ferra pela companhia, você não tem ambição, não quer crescer,
portanto não tem o direito a um ganho digno ou a subir na vida. Eu encaro este
ponto do neo-taylorismo como sendo um dos mais eficazes contra a mobilização dos
trabalhadores. Cada trabalhador vira competidor contra o outro. Dessa forma
fica impossível a conquista de direitos ou mesmo, como vivemos hoje, a
manutenção dos já conquistados.
Daí então me pergunto, que reforma
é possível se os meios políticos para uma mudança pacífica estão sequestrados
pelos poderosos? Em uma sociedade onde a mídia de maneira muito eficaz põe a
culpa da crise na vítima? Essa mesma mídia vende a desigualdade como algo bom e
necessário, pois assim cada um tem o que merece. Será que os pobres não
percebem o tamanho da injustiça?
No século XIX a pobreza era
percebida como uma questão de nascimento, se você não nasceu em família rica,
já era, vai ser pobre para sempre. A partir de algum momento passou a ser
possível, então , lutar contra esta injustiça, pois ela era assim percebida. Hoje
não. Hoje o pobre é pobre porque não se esforçou o suficiente, pois eu conheço
uma pessoa que passou no vestibular para medicina estudando em livros que
encontrou no lixo. A injustiça do sistema “pivotou” para a indolência do
indivíduo.
Nessas horas fico imaginando ser
impossível mudar isso sem uma ruptura grave, a chamada Revolução. No entanto, é
difícil imaginar como uma revolução seria capaz de provocar mudanças tão profundas a ponto de uma
sociedade que se quer desigual passar e se aceitar como equânime. Aí vem então
meu lado reformista. Devemos fazer a sociedade se perceber como injusta e
desigual e produzir meios para promover mais justiça para seus membros.
Ao longo da História a vida de
cada um dos indivíduos, no Ocidente, tem se tornado cada vez mais
importante. Cria-se então um paradoxo, pois as vidas dos desfavorecidos era
simplesmente gasta para produzir conforto para os poderosos. Mas se, agora, ele
precisa ter mérito e força de vontade e ambição, em algum momento ele pode não
mais aceitar ser “gasto” dessa forma. E aí?
Como apontou o Piketty, estamos
vivendo um momento histórico em que as desigualdades de renda e patrimônio são
comparáveis à da Europa no fim do século XIX. Todas as vezes em que se chegou a
este ponto, houve uma grande ruptura no tecido social. No caso do fim do século
XIX, as grandes guerras. No caso de hoje, o que podemos esperar? Me questiono
se é possível que haja essa ruptura, quando meios de comunicação em massa estão
muito afinados em promover, de maneira muito eficaz, a aceitação das injustiças
como inevitáveis e até mesmo como desejáveis. Talvez nem mesmo a ruptura seja
desejável, pois ela, em alguns momentos, levou não diretamente à construção de
uma sociedade mais justa, mas a ditaduras excludentes.
Não é possível definir a série
como otimista ou pessimista nesse sentido. De qualquer maneira, um Brasil onde
3% podem chegar ao grupo dos privilegiados já pode ser considerado mais justo
do que o nosso país atual.
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