O livro de Darcy Ribeiro, O povo
brasileiro – A formação e o sentido do Brasil, foi escrito em 1995. Darcy faz
uma análise da trajetória do Brasil focando nas três grandes matrizes étnicas
que influenciaram a nossa formação e que viriam a integrar etnia nacional,
constituindo assim um só povo, uma só nação, tal qual conhecemos hoje. Enquanto
reconstrói a trajetória de cada uma dessas narrativas, o autor vai apontando os
principais fatos políticos, econômicos e sociais que não apenas influenciaram a
nossa formação como nação como também
contribuíram para criação de uma sociedade desigual, autoritária,
hierarquizada, atrasada e profundamente influenciada pela escravidão.
Pensar a história da formação do
povo Brasileiro é, antes de mais nada, pensar sobre a violência. Não que seja
possível imaginar a trajetória da humanidade desvencilhada da brutalidade
humana, mas aqui, os tipos particulares de violência que foram praticados nos
primeiros séculos da formação do Brasil são cicatrizes que nos definem porque
ainda hoje se perpetuam. Não apenas as invasões europeias iniciadas no século
XVI inauguraram as práticas genocidas no continente americano, como também
iniciaram, aqui, as práticas da escravidão. Enquanto a população nativa era
sistematicamente exterminada em prol dos interesses mercantis lusitanos, o
processo de povoamento dentro desse empreendimento comercial chamado Brasil,
era realizado, muito provavelmente, através do estupro praticado por uns poucos
homens brancos contra uma multidão de mulheres índias e negras dominadas e
inferiorizadas. Logo, as origens do que hoje chamamos de povo, surgiu desse
aglomerado de seres humanos escravizados (e seus descendentes) que existiam
unicamente para mover as engrenagens do projeto comercial mais lucrativo que
existiu na época. Darcy nos mostra que “se
diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um
povo por excelência gentil e pacífico...”, no entanto “conflitos de toda ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos,
sociais, econômicos, religiosos, raciais, etc”. No processo de formação do
povo brasileiro “pode-se afirmar, mesmo,
que vivemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com
frequência, se torna cruento e sangrento”. Assim, o que existiu, e que
ainda hoje existe, é um mecanismo repressivo em constante atuação que sempre
funcionou no sentido de manter a ordem e os interesses de uma classe composta
por uma minoria.
As classes dominantes, de modo
geral, sempre buscaram o benefício próprio com pouco ou nenhum compromisso com
o desenvolvimento nacional. Seja controlando a agenda do país, a mídia, a
opinião pública, a classe política ou os governantes, nunca tiveram pudor de
aderir às políticas econômicas que colocassem o país em condição de debilidade,
desde que pudesse extrair algum lucro.
Seguimos essa tendência secular que nos condena ao atraso e a pobreza
baseada na privatização dos lucros e socialização das perdas. “O modo de ordenação da sociedade,
estruturada contras os interesses da população, desde sempre sangrada para
servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um
povo livre, regendo seu destino na busca de sua prosperidade. O que houve, e o
que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada, e ofendida por uma
minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu
próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de
reforma da ordem social vigente”.
Dessa forma, embora Darcy
apresente a ideia de que nós, brasileiros, somos um só povo, uma só nação
formada através de um complexo processo de deculturação
e caldeamento do negro, do índio e do próprio europeu que formou um elemento
completamente novo, me pergunto se na prática isso de fato aconteceu. Me parece
que, por maior que tenha sido o longo e incomensurável processo de aniquilação
dessas culturas, as vozes indígena e africana ainda existem e configuram
diferenças entre si e entre o discurso defendido por Darcy. O que talvez
tenhamos atualmente seja um monopólio de um discurso específico e de sua
narrativa que é estabelecido como “oficial” em detrimento de outras narrativas
que embora existam e resistam, permanecem subterrâneas em virtude dessa mesma
violência repressora capaz de ensejar esquecimento, deformação ou abandono.
De qualquer forma, o trabalho de
Darcy Ribeiro na escrita do livro “O povo brasileiro” é uma contribuição
definitivamente preciosa que se fez e ainda se faz indiscutivelmente
necessária, ainda que seja importante ponderar algumas de suas colocações. O
exercício de Darcy de tentar oferecer “lucidez” sobre os acontecimentos e fatos
da nossa construção enquanto uma nação,
nos traz novas possibilidades de reinvenção como povo. Reivindicar outras
narrativas é permitir novas oportunidades nesses futuros disputados.
Observação: Olha, tenho que confessar que
me incomoda a utilização do termo “mulato” por Darcy. Não acho que diminua a
obra, mas considero um termo racista. Por mais que tenhamos que entender o
autor dentro do seu contexto, não me sinto confortável de não apontar. Como se
sabe, “mulato” vem de “mula”. “Mula” é o cruzamento do cavalo com o jumento que
gera um animal estéril. É um termo pejorativo que traduz imperfeição. Não é
segredo pra ninguém que o racismo científico no século XIX (que teve grande
influência por aqui) professava o fim do Brasil por conta do alto grau de
miscigenação. Quando penso sobre a política de branqueamento e o genocídio do
povo preto, essa reflexão sempre me remete a esse momento histórico. Enfim,
acho que podemos utilizar outros termos.
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