segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Um povo brasileiro?




O livro de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro – A formação e o sentido do Brasil, foi escrito em 1995. Darcy faz uma análise da trajetória do Brasil focando nas três grandes matrizes étnicas que influenciaram a nossa formação e que viriam a integrar etnia nacional, constituindo assim um só povo, uma só nação, tal qual conhecemos hoje. Enquanto reconstrói a trajetória de cada uma dessas narrativas, o autor vai apontando os principais fatos políticos, econômicos e sociais que não apenas influenciaram a nossa formação como nação como também contribuíram para criação de uma sociedade desigual, autoritária, hierarquizada, atrasada e profundamente influenciada pela escravidão.
Pensar a história da formação do povo Brasileiro é, antes de mais nada, pensar sobre a violência. Não que seja possível imaginar a trajetória da humanidade desvencilhada da brutalidade humana, mas aqui, os tipos particulares de violência que foram praticados nos primeiros séculos da formação do Brasil são cicatrizes que nos definem porque ainda hoje se perpetuam. Não apenas as invasões europeias iniciadas no século XVI inauguraram as práticas genocidas no continente americano, como também iniciaram, aqui, as práticas da escravidão. Enquanto a população nativa era sistematicamente exterminada em prol dos interesses mercantis lusitanos, o processo de povoamento dentro desse empreendimento comercial chamado Brasil, era realizado, muito provavelmente, através do estupro praticado por uns poucos homens brancos contra uma multidão de mulheres índias e negras dominadas e inferiorizadas. Logo, as origens do que hoje chamamos de povo, surgiu desse aglomerado de seres humanos escravizados (e seus descendentes) que existiam unicamente para mover as engrenagens do projeto comercial mais lucrativo que existiu na época. Darcy nos mostra que “se diz que nossa característica essencial é a cordialidade, que faria de nós um povo por excelência gentil e pacífico...”, no entanto “conflitos de toda ordem dilaceraram a história brasileira, étnicos, sociais, econômicos, religiosos, raciais, etc”. No processo de formação do povo brasileiro “pode-se afirmar, mesmo, que vivemos praticamente em estado de guerra latente, que, por vezes, e com frequência, se torna cruento e sangrento”. Assim, o que existiu, e que ainda hoje existe, é um mecanismo repressivo em constante atuação que sempre funcionou no sentido de manter a ordem e os interesses de uma classe composta por uma minoria.
As classes dominantes, de modo geral, sempre buscaram o benefício próprio com pouco ou nenhum compromisso com o desenvolvimento nacional. Seja controlando a agenda do país, a mídia, a opinião pública, a classe política ou os governantes, nunca tiveram pudor de aderir às políticas econômicas que colocassem o país em condição de debilidade, desde que pudesse extrair algum lucro.  Seguimos essa tendência secular que nos condena ao atraso e a pobreza baseada na privatização dos lucros e socialização das perdas. “O modo de ordenação da sociedade, estruturada contras os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua prosperidade. O que houve, e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada, e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente”.
Dessa forma, embora Darcy apresente a ideia de que nós, brasileiros, somos um só povo, uma só nação formada através de um complexo processo de deculturação e caldeamento do negro, do índio e do próprio europeu que formou um elemento completamente novo, me pergunto se na prática isso de fato aconteceu. Me parece que, por maior que tenha sido o longo e incomensurável processo de aniquilação dessas culturas, as vozes indígena e africana ainda existem e configuram diferenças entre si e entre o discurso defendido por Darcy. O que talvez tenhamos atualmente seja um monopólio de um discurso específico e de sua narrativa que é estabelecido como “oficial” em detrimento de outras narrativas que embora existam e resistam, permanecem subterrâneas em virtude dessa mesma violência repressora capaz de ensejar esquecimento, deformação ou abandono.
De qualquer forma, o trabalho de Darcy Ribeiro na escrita do livro “O povo brasileiro” é uma contribuição definitivamente preciosa que se fez e ainda se faz indiscutivelmente necessária, ainda que seja importante ponderar algumas de suas colocações. O exercício de Darcy de tentar oferecer “lucidez” sobre os acontecimentos e fatos da nossa construção enquanto uma nação, nos traz novas possibilidades de reinvenção como povo. Reivindicar outras narrativas é permitir novas oportunidades nesses futuros disputados.


Observação: Olha, tenho que confessar que me incomoda a utilização do termo “mulato” por Darcy. Não acho que diminua a obra, mas considero um termo racista. Por mais que tenhamos que entender o autor dentro do seu contexto, não me sinto confortável de não apontar. Como se sabe, “mulato” vem de “mula”. “Mula” é o cruzamento do cavalo com o jumento que gera um animal estéril. É um termo pejorativo que traduz imperfeição. Não é segredo pra ninguém que o racismo científico no século XIX (que teve grande influência por aqui) professava o fim do Brasil por conta do alto grau de miscigenação. Quando penso sobre a política de branqueamento e o genocídio do povo preto, essa reflexão sempre me remete a esse momento histórico. Enfim, acho que podemos utilizar outros termos. 

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