“O Povo
Brasileiro” é, até agora, o livro que melhor resume o que eu esperava ler no
GEB. Darcy combina nessa obra pesquisa histórica, vivência pessoal e opinião
bem construída. Tudo isso escrito de maneira compreensível, em um livro claro,
sucinto e objetivo. Gostaria de ter lido este livro, ou ao menos fragmentos
dele no ensino médio. Mas que bom que li em algum momento da vida. Ele traz uma
visão grande da formação do Brasil, sem se perder em detalhes pouco relevantes,
com referências sólidas e ao mesmo tempo contendo um juízo claro de justiça
social. Não chega a criar propostas claras, mas aponta caminhos de otimismo,
diferente do que foi colocado em outras obras que lemos. Coloca as vantagens do
esquema cruel de miscigenação que nos gerou, e o aponta como um trunfo nosso.
Na parte
inicial do livro, dois pontos merecem destaque em relação a nossas outras
leituras. Darcy aborda o índio valorizando sua diversidade. Enfatizou muito o processo
de aculturação que atingiu não só o índio nativo como o africano importado. E
em como uma nova identidade foi criada a partir desse aculturamento, uma
transfiguração, que transformou desíndios, deseuropeus e desafricanos em
brasileiros. Numa dialética presente por todo o livro, ele parte de atos cruéis,
como a escravidão, a transformação dos índios em índios genéricos, para
explicar a formação do povo brasileiro e apontar virtudes desse processo que,
apesar de ter gastado muita gente, unificou o povo em quem sobrou e resistiu. A
Rede Globo talvez represente, hoje, uma nova forma de aculturação, agindo como
fator homogeneizador da cultura, a partir do predomínio cultural do eixo
Rio-SP, mas também como reforçador de uma identidade nacional através das
novelas, algumas excelentes, que incorporam elementos fora desse eixo. A televisão
por assinatura acentua a presença de elementos dos países centrais na cultura
nacional, potencializado pela internet, anglófona por excelência. Daí a
importância da lei do conteúdo nacional, que garante a presença de produções
brasileiras na programação da TV.
Ele mostra
também uma construção bem mais elaborada do que o Celso Furtado na hora de
descrever a opção pela mão de obra imigrante europeia no século XIX. Bem melhor
e mais embasada, na verdade.
A noção de gastar
ou moer gente foi, a meu ver, brilhante. Não sei se foi ele que inventou, mas
colocada da maneira que ele fez, deu uma ideia claríssima de como é o processo
de expansão do capitalismo. Submetendo-se tudo ao lucro, gasta-se gente para produzir açúcar, metal, café, borracha, o que
for. Qualquer coisa que no fim produz um lucro a ser acumulado por outra
pessoa.
A visão
macro do autor nos coloca algo absolutamente óbvio e que nos passa, muitas
vezes, despercebido no micro do dia-a-dia: que em momento algum o objetivo da
organização do País foi o bem-estar de seus ocupantes. Esta afirmação é
precisa. Desde sempre o objetivo foi tornar o Brasil uma terra de produção de
lucro para o norte, como força de trabalho periférica. O Brasil é produto de
uma expansão econômica mundial. A nação existe, se constituiu por causa e
apesar desse sistema perverso, mas agimos como se não houvesse. Juntando Darcy
e Jessé, nossas classes alta e média se uniram numa conspiração autofágica
contra os pobres, i.e., a própria massa do nosso povo. É comum o pensamento de
não ajudar o outro, valorizar um modelo de Estado que não seja solidário com o
pobre, mas que possa me ser útil de alguma forma.
Darcy
destacou como ninguém a importância do brasilíndio, que foi quem efetivamente
povoou o país, ao menos em seus três primeiros séculos depois da invasão
europeia. Esse traço continua marcante em especial no Brasil caipira, mas
também fora dele. Talvez a “tristeza” do brasileiro seja um desdobramento desse
luto atávico dos índios resistentes pelos seus ancestrais gastos ou
assassinados no processo.
Outro ponto
marcante foi a discussão sobre a religião, no caso, a católica e os jesuítas. A
religião cristã coloca o povo escolhido como diferente da natureza, então ele
passa a se sentir confortável para explorá-la sem entender que faz parte dela. Inclusive
para gastar os outros.
Numa
perspectiva de longo tempo, que o livro ajuda a formar, consigo perceber um
movimento de consolidação da identidade brasileira saindo de sua
eurobrancofilia para uma sociedade de tolerância e aceitação da pluralidade e
de intolerância com preconceitos. Certamente isso causa uma reação, pois é
provável que “... surjam novas e maiores
tensaões propensas a desacelerar o caldeamento, pela resistência em todos os
níveis sociais à ascensão maciça do contingente mais negro, em competição com o
menos negro, e pela nova atitude, mais exigente, da mulher de cor no estabelecimento
de relações. ” ( Entendo que este é apenas o começo de um caminho que muito
provavelmente não tem fim, mas já é bem diferente se tomarmos uma perspectiva
longitudinal. Essa ideia me foi reforçada pela peça “o Topo da Montanha”. Nela,
Martin Luther King Jr encontra uma personagem fictícia e repassa momentos de
sua luta, que é colocada como não sendo exclusivamente racial. Isso me fez
pensar em como, há tão pouco tempo, coisas hoje tidas como corriqueiras eram
vistas como inadmissíveis, desde o divórcio até a proibição de casamentos inter-raciais
em alguns estados dos EUA. Claro que olhando um recorte no tempo e no espaço
podemos achar momentos de grande retrocesso e sofrimento (o próprio King foi
assassinado), mas ao longo de décadas é possível ver grandes avanços (suas ideias não morreram com ele. O bastão foi passado adiante). Talvez seja essa a
mensagem que Darcy , o reformista, queira deixar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário