segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Dialética do Reformista

“O Povo Brasileiro” é, até agora, o livro que melhor resume o que eu esperava ler no GEB. Darcy combina nessa obra pesquisa histórica, vivência pessoal e opinião bem construída. Tudo isso escrito de maneira compreensível, em um livro claro, sucinto e objetivo. Gostaria de ter lido este livro, ou ao menos fragmentos dele no ensino médio. Mas que bom que li em algum momento da vida. Ele traz uma visão grande da formação do Brasil, sem se perder em detalhes pouco relevantes, com referências sólidas e ao mesmo tempo contendo um juízo claro de justiça social. Não chega a criar propostas claras, mas aponta caminhos de otimismo, diferente do que foi colocado em outras obras que lemos. Coloca as vantagens do esquema cruel de miscigenação que nos gerou, e o aponta como um trunfo nosso.

Na parte inicial do livro, dois pontos merecem destaque em relação a nossas outras leituras. Darcy aborda o índio valorizando sua diversidade. Enfatizou muito o processo de aculturação que atingiu não só o índio nativo como o africano importado. E em como uma nova identidade foi criada a partir desse aculturamento, uma transfiguração, que transformou desíndios, deseuropeus e desafricanos em brasileiros. Numa dialética presente por todo o livro, ele parte de atos cruéis, como a escravidão, a transformação dos índios em índios genéricos, para explicar a formação do povo brasileiro e apontar virtudes desse processo que, apesar de ter gastado muita gente, unificou o povo em quem sobrou e resistiu. A Rede Globo talvez represente, hoje, uma nova forma de aculturação, agindo como fator homogeneizador da cultura, a partir do predomínio cultural do eixo Rio-SP, mas também como reforçador de uma identidade nacional através das novelas, algumas excelentes, que incorporam elementos fora desse eixo. A televisão por assinatura acentua a presença de elementos dos países centrais na cultura nacional, potencializado pela internet, anglófona por excelência. Daí a importância da lei do conteúdo nacional, que garante a presença de produções brasileiras na programação da TV.

Ele mostra também uma construção bem mais elaborada do que o Celso Furtado na hora de descrever a opção pela mão de obra imigrante europeia no século XIX. Bem melhor e mais embasada, na verdade.

A noção de gastar ou moer gente foi, a meu ver, brilhante. Não sei se foi ele que inventou, mas colocada da maneira que ele fez, deu uma ideia claríssima de como é o processo de expansão do capitalismo. Submetendo-se tudo ao lucro, gasta-se gente para produzir açúcar, metal, café, borracha, o que for. Qualquer coisa que no fim produz um lucro a ser acumulado por outra pessoa.

A visão macro do autor nos coloca algo absolutamente óbvio e que nos passa, muitas vezes, despercebido no micro do dia-a-dia: que em momento algum o objetivo da organização do País foi o bem-estar de seus ocupantes. Esta afirmação é precisa. Desde sempre o objetivo foi tornar o Brasil uma terra de produção de lucro para o norte, como força de trabalho periférica. O Brasil é produto de uma expansão econômica mundial. A nação existe, se constituiu por causa e apesar desse sistema perverso, mas agimos como se não houvesse. Juntando Darcy e Jessé, nossas classes alta e média se uniram numa conspiração autofágica contra os pobres, i.e., a própria massa do nosso povo. É comum o pensamento de não ajudar o outro, valorizar um modelo de Estado que não seja solidário com o pobre, mas que possa me ser útil de alguma forma.

Darcy destacou como ninguém a importância do brasilíndio, que foi quem efetivamente povoou o país, ao menos em seus três primeiros séculos depois da invasão europeia. Esse traço continua marcante em especial no Brasil caipira, mas também fora dele. Talvez a “tristeza” do brasileiro seja um desdobramento desse luto atávico dos índios resistentes pelos seus ancestrais gastos ou assassinados no processo.

Outro ponto marcante foi a discussão sobre a religião, no caso, a católica e os jesuítas. A religião cristã coloca o povo escolhido como diferente da natureza, então ele passa a se sentir confortável para explorá-la sem entender que faz parte dela. Inclusive para gastar os outros.
  

Numa perspectiva de longo tempo, que o livro ajuda a formar, consigo perceber um movimento de consolidação da identidade brasileira saindo de sua eurobrancofilia para uma sociedade de tolerância e aceitação da pluralidade e de intolerância com preconceitos. Certamente isso causa uma reação, pois é provável que “... surjam novas e maiores tensaões propensas a desacelerar o caldeamento, pela resistência em todos os níveis sociais à ascensão maciça do contingente mais negro, em competição com o menos negro, e pela nova atitude, mais exigente, da mulher de cor no estabelecimento de relações. ” ( Entendo que este é apenas o começo de um caminho que muito provavelmente não tem fim, mas já é bem diferente se tomarmos uma perspectiva longitudinal. Essa ideia me foi reforçada pela peça “o Topo da Montanha”. Nela, Martin Luther King Jr encontra uma personagem fictícia e repassa momentos de sua luta, que é colocada como não sendo exclusivamente racial. Isso me fez pensar em como, há tão pouco tempo, coisas hoje tidas como corriqueiras eram vistas como inadmissíveis, desde o divórcio até a proibição de casamentos inter-raciais em alguns estados dos EUA. Claro que olhando um recorte no tempo e no espaço podemos achar momentos de grande retrocesso e sofrimento (o próprio King foi assassinado), mas ao longo de décadas é possível ver grandes avanços (suas ideias não morreram com ele. O bastão foi passado adiante). Talvez seja essa a mensagem que Darcy , o reformista, queira deixar.

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