terça-feira, 7 de julho de 2015

Instituições amolecidas ou abstratas? Por uma concepção de justiça "à brasileira"


(Metamorfose de Narciso - Salvador Dali)

"A singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África. Nem intransigentemente de uma, nem de outra, mas das duas. A influência africana fervendo sobre a européia e dando um acre requeime à vida sexual, À alimentação, à religião, o sangue mouro ou negro correndo por uma grande população brancarana, quando não predominando em regiões ainda hoje de gente escura; o ar da África, um ar quente, oleoso, amolecendo, nas instituições e na forma de cultura, as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária da Igreja medieval; tirando os ossos ao cristianismo, ao feudalismo, à arquitetura gótica, À disciplina canônica, ao direito visigótico, ao latim, ao próprio caráter do povo. A Europa reinando sem governar; governando antes a África." (Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, p. 66)

Gilberto Freyre foi buscar na observação do Sul dos EUA as reflexões que faltavam para completar seu ensaio sobre o Brasil, o seu desejo de ser "rival" de Pedro Álvares Cabral. Ao "descobrir" o Brasil com sua obra, Freyre permitiu que muitos autores dialogassem com ela - para refutá-la, concordar com suas teses ou simplesmente admirá-la. Porém, ao fim e ao cabo, Freyre está preocupado com a formação de um povo, sua cultura e a mistura de raças que ajudou a moldar a nossa "democracia racial".

Não há nenhuma preocupação do escritor com uma postura crítica em relação à conduta do português colonizador (há até mesmo uma certa condescendência - quiçá admiração - com o senhor da Casa Grande) ou mesmo uma preocupação normativa do tipo "o que devemos fazer para nos superarmos como nação" (preocupação mais evidente de Paulo Prado). Há o intento de descrever e observar. Talvez até de contemporizar, de modo a que possamos "perdoar" nossos antepassados e aceitar melhor a tumultuosa formação do nosso país - como defende Fernando Henrique no seu prefácio à 51ª edição. Mas não há um projeto de nação por trás.

Nem a compreensão da construção das instituições que poderiam nos levar a uma sociedade mais desenvolvida e menos desigual. Mas há autores que possuem essa preocupação:

"A justiça é a virtude primeira das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento. (...) Cada pessoa possui uma inviolabilidade fundada na justiça que nem o bem-estar de toda a sociedade pode desconsiderar. Por isso a Justiça nega que a liberdade de alguns se justifique por um bem maior desfrutado por outros. Por conseguinte, na sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas irrevogáveis; os direitos garantidos pela justiça não estão sujeitos a negociações políticas nem ao cálculo de interesses sociais. Por serem as virtudes primeiras das atividades humanas, a verdade e a justiça não aceitam compromissos. (...) A sociedade é bem-ordenada não somente quando foi planejada para promover o bem de seus membros, mas também quando é realmente regulada por uma concepção pública de justiça. Ou seja, é uma sociedade na qual (1) todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça; e (2) as instituições sociais fundamentais geralmente atendem, e em geral se sabe que atendem, a esses princípios. Nesse caso, embora seus membros possam fazer exigências mútuas excessivas, eles não obstante reconhecem uma perspectiva comum da qual suas reivindicações pode, ser julgadas. Se as inclinações dos seres humanos para o interesse próprio tornam a vigilância mútua, seu senso público de justiça lhes permite se unir em uma associação segura. Entre indivíduos com propósitos díspares, uma concepção compartilhada de justiça define os vínculos da amizade cívica; o desejo geral de justiça limita a busca de outros fins." (John Rawls, Uma Teoria da Justiça pp.4-5)

John Rawls, autor americano do século XX, é herdeiro de uma longa tradição de contratualistas que se propõem a pensar os princípios de uma sociedade justa e bem ordenada -  Platão, Aristóteles, Kant, Hobbes, Rosseuau, e, mais modernamente, Robert Nozick e Amartya Sen). Rawls não está preocupado em descrever e avaliar - sua preocupação é puramente normativa, especulando, em abstrato, quais seriam os princípios de uma justiça distributiva que uma sociedade de pessoas racionais e livres acordariam se fosse possível obter um consenso sobre os aspectos determinantes da justiça social. Essa sociedade ideal não existe - e Rawls aponta isso diversas vezes em seu livro. Mas algum nível de concepção compartilhada de justiça é necessário para se construir uma sociedade justa, e é dessa premissa que o autor parte para a proposição de princípios e instituições que comporiam esta sociedade hipotética.

Uma concepção compartilhada de justiça seria possível em uma sociedade construída com base no "amolecimento" das instituições e na atribuição - ainda que não tão rígida assim - de papéis sociais específicos para cada "raça"? Sim - e ao afirmar esta possibilidade, demarco um ato de fé de uma inocência até um pouco pueril, tal qual a de Freyre ao supor que houve uma "doce mistura das raças" na fundação do nosso país. Mas a talvez essa fé, essa "ingenuidade", por assim dizer, seja necessária para que possamos olhar para noções tão abstratas como a de "justiça distributiva" (construída por autores anglo-saxões que elaboram teorias que, de uma certa forma, espelham suas realidades sociais), e a aproximarmos de nossa sociedade como ela é - com todos os vícios e virtudes de sua formação.

Mais do que aproximar a Casa Grande da Senzala (ou mesmo de fingir que elas nunca existiram), o esforço fundamental é o de, reconhecendo a existência de ambos, acreditarmos que formamos um conjunto - cultural, artístico, linguístico, social, político, econômico -  bom o bastante para superarmos nossas diferenças e construir um conjunto de justiça compartilhada compatível com a nossa sociedade atual, do modo como ela é. Ao olhar pelo espelho, cabe a cada brasileiro não esquecer da sua origem, mas, sem abdicar dela, dar o passo seguinte em direção à construção de valores e instituições BRASILEIRAS - mais justas, menos "importadas" e mais próximas das nossa realidade. Porque enquanto continuarmos a olhar para as visões abstratas construídas por autores de outros países, sem uma visão real do que somos, só o que enxergaremos é um reflexo distorcido - no qual jamais seremos capazes de nos reconhecer.
    

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