domingo, 27 de novembro de 2016

A pólis é o espaço da política - das favelas brasileiras ao Congresso americano




A leitura do livro "O Dono do Morro - Um Homem e a Batalha pelo Rio" é fluída e saborosa e deixa, ao final, a vontade de ler mais sobre o processo de urbanização da capital fluminense, as raízes da sua violência e desigualdade e as políticas de combate às drogas. A despeito de Misha Glenny cair no canto da sereia de ser condescendente com seu biografado (o que por vezes dá um tom meio previsível à sua narrativa), ele ainda assim é capaz de contar sua história de maneira a colocar o foco em diversos aspectos da favela e da cidade - e por vezes me perguntei se a biografia era de fato sobre Antonio Francisco Bonfim Lopes ou se o sujeito da biografia eram a Rocinha ou a própria cidade do Rio de Janeiro.

Pois essa é uma das virtudes mais impressionantes deste livro: para além de contar a trajetória do "Dono do Morro", Misha consegue nos mostrar um pouco da vida vibrante e difícil dos moradores da Rocinha, oferecendo-nos, ainda, algumas espiadelas sobre a cidade do Rio de Janeiro e sua trajetória contemporânea no combate às drogas. E são tantas as imbricações e singularidades que nos são apresentadas em um piscar, quase como se Misha estivesse de carona em um dos famosos mototaxis e só nos pudesse oferecer realmente um vislumbre destes assuntos, que é até difícil selecionar apenas um para escrever neste texto. Mas vou apostar no que me chamou mais atenção: a política - e o modo como ela aparece de maneira transversal nesta narrativa.

Logo no início, na Parte 1, em que o autor está elaborando o cenário do Rio de Janeiro dos anos 1960-1980, mostrando como a cocaína invade a cidade e como as grandes facções dos anos 1990 tem seu nascimento nos presídios da ditadura militar, Misha nos apresenta à lógica da guerra às drogas americana, e nos mostra o impacto desta política nas mazelas brasileiras. Como bem pondera nosso narrador: "a lógica da guerra às drogas, ainda firmemente adotada em Washington e na maioria dos países europeus, europeus, criara um círculo vicioso de matanças e excessos que uniam os fabricantes de armas dos Estados Unidos, os traficantes da América do Sul e os consumidores de cocaína das classes médias de Berlim a Los Angeles." (Capítulo 5 - Colapso Moral). Uma pena que Misha abdica de apresentar mais argumentos do debate moderno em torno da liberação das drogas (e vale sempre a pena se atualizar sobre o debate. A favor da liberação: aqui e aqui. Contra: aqui), embora, me pareça claro o posicionamento dele contrário à política da guerra às drogas1. Contudo, achei incrível o modo como ele conseguiu conectar a decisão do presidente americano Nixon em intensificar a guerra às drogas (por questões da política interna americana) na década de 1970 com o aumento do número de óbitos na cidade do Rio de Janeiro nas décadas seguintes. 

Esse é um aspecto bastante interessante do fenômeno das drogas no mundo contemporâneo: as decisões tomadas pelos legisladores e governantes impactam, profundamente, a vida dos outros países em seus níveis mais locais (não só no que se refere ao gigante norte-americano, mas também para todos os países produtores, consumidores e distribuidores de droga - ou seja, o mundo quase todo). Assim, a política deve ser enxergada sob o prisma local e global, sendo bastante complicado que as decisões tomadas nas arenas decisórias de uma nação tem efeitos substanciais nas demais - sem que seus cidadãos possam ao menos ser consultados (nem ter consciência) sobre isso.

Outra faceta da política que nos é apresentado é o das eleições ao governo do Rio de Janeiro. Misha nos apresenta brevemente à história de José Mariano Beltrame, como se este fosse o "nêmesis" do Nem (capítulo 21 - Nêmesis). Talvez por ter feito bastante pesquisa entre os membros das forças policiais (há, inclusive, um apêndice sobre as principais forças policiais no Rio de Janeiro), há um bocado de informação - e de percepção - sobre os policiais ao longo da narrativa. Contudo, me chamou a atenção o modo como a política no âmbito do Poder Executivo estadual (e também o municipal, claro, como vimos na mais recente eleição para prefeito do Rio de Janeiro) é profundamente influenciada pelos acontecimentos na vida das favelas. Como cidadãos do município do Rio de Janeiro, é claro que os moradores das comunidades devem ter vez no espaço público (embora na prática... não muito), mas o modo como a real politk se constrói nos níveis mais estratégicos do governo do Estado, embricada com o controle que os traficantes e milicianos possuem sobre as comunidades onde atuam é realmente impressionante. 

A política de combate às drogas não é apenas uma política pública ("policy", em inglês), mas também, e fundamentalmente, uma questão de política ("politics", em inglês). E, tal qual como apontado acima, as decisões tomadas entre agentes das forças policiais - na teoria, representantes do Poder Executivo cumprindo orientações decorrentes das leis e regulamentos e, por isso mesmo, apenas "burocratas de nível de rua" sem poder de decisão, mas que, na prática, criam as leis, julgam e executam, à revelia de suas atribuições e hierarquia - e representantes dos tráficos e das milícias - que comandam a vida das comunidades em que atuam e que, como Misha aponta no livro, no melhor dos cenários não passam de "déspotas esclarecidos" -  passam ao largo da vida pública formal do governo do Estado, sem que seus cidadãos possam ao menos ser consultados (nem ter consciência) sobre isso. 

Por fim, quero destacar a faceta da política da favela. Misha aponta que Nem é um membro fundamental da comunidade - e, como tal, precisava ter voz política na favela. No capítulo 24 - Política, o narrador nos descreve como Nem apóia membros da comunidade para tentarem se eleger como vereadores da Câmara Municipal. Em uma relação diferente da que nos foi apontada por Carolina em "Quarto de Despejo", ao invés de os moradores da favela trocarem seus votos por comida e roupa, Nem faz o esforço de construir um candidato local que possa ter voz nas instâncias formais de governo. Não seria a primeira vez - e certamente não será a última - que traficantes e milicianos investem suas fichas na construção de uma força política com voz e voto no poder público. A jogada não dá certo, a despeito de Feijão e  William terem boas chances e recursos para fazerem campanha. Contudo, para além das relações com o governo formal, me impressiona também a política existente no próprio comando do "dono do morro". 

Misha aponta que a força do traficante reside sobre três pilares: (i) ganhar apoio local, distribuindo parte dos lucros do tráfico entre os membros da comunidade; (ii) enviar a inimigos e dissidentes a mensagem de que a dissidência desencadeia o uso da força; (iii) praticar sistematicamente a corrupção dos agentes da polícia. Cada chefão punha pesos diferentes nesses pilares, o que significava que o clima mudava drasticamente de favela para favela e de chefão para chefão (Capítulo 4 - Corpos). Nem é um cara que consegue habilmente equilibrar estes 3 pilares, razão pela qual seu reinado é tão duradouro e "estável" (considerando os padrões existentes nas demais comunidades). Ele exerce forte influência sobre uma das Associações de Moradores da Rocinha (elegendo Feijão, seu amigo de infância, como líder comunitário). Ele consegue o apoio da comunidade ao implantar regras de boa conduta, como impedir a entrada de menores de 16 anos nas fileiras do tráfico. Ele consegue trazer celebridades do mundo pop para dentro da favela. Ele tem bom relacionamento com jogadores de futebol, jornalistas, intelectuais e políticos. Ele identifica pontos fortes e fracos dos seus subordinados e atribui a eles tarefas adequadas a seus perfis de personalidade. Ele consegue manter sua aura de "machão" na favela, ao mesmo tempo que mantém em dia todas as suas obrigações como pai de família e marido "provedor". Ele distribui doces Às crianças nas datas festivas e escuta paciente as demandas e reclamações dos moradores da favela. Nem compreende como ninguém que seu poder reside muito mais em sua rede de relacionamentos do que na força de suas armas. E que o "dono do morro", a despeito de ser um déspota esclarecido, não tem um reinado muito longevo se houver fraquezas na construção política dos pilares que o sustentam.

Talvez, de todos os aspectos da política que mencionei até aqui, a atuação do "déspota esclarecido" tenha sido o momento em que os cidadãos daquela comunidade pudessem, de fato, opinar de maneira mais decisiva na construção das decisões que mais impactam suas vidas. Longe de argumentar que o regime de terror imposto por traficantes e milicianos seja um esforço saudável de democracia; contudo, o que me causa mais espanto na identificação de como a política aparece de forma transversal neste livro, é que, nas instâncias formais de arena política, o cidadão tem pouco (senão nenhum) poder decisório sobre as decisões mais fundamentais do combate às drogas, enquanto na favela, durante o período de Nem, a política se constrói de modo mais direto para os seus habitantes. 

O termo "pólis" era o modelo das antigas cidades gregas, desde o período arcaico até o período clássico, vindo a perder importância a partir do domínio romano. Devido às suas características, o termo pode ser usado como sinônimo de cidade-Estado. A pólis, definido como modo de vida urbano em que os "cidadãos" participavam ativamente das decisões mais importantes da cidade, mostraram-se um elemento fundamental na constituição da cultura grega, a ponto de se dizer que o homem é um "animal politico". De fato, não existe vida sem política, em todos os níveis e para todos os aspectos relevantes da nossa existência. A trajetória de Nem, com seus muitos embricamentos e idiossincrasias, nos prova o quanto a política é transversal e opera de diferentes maneiras e em diversos níveis. Independente de ser na favela ou no Congresso americano, a política, em suas diferentes construções, é a arena de tomada de decisões públicas. A política não é uma opção - ela simplesmente é. 

1. "A única coisa que a guerra às drogas não conseguiu fazer no mundo ocidental foi cumprir seu objetivo: que as pessoas parassem de usá-las. O consumo nunca foi tão grande. Mas o impacto da política americana e europeia tem sido muito mais cruento cruento nos países de produção e distribuição das drogas. Desde os anos 1980, quando a indústria da cocaína criou um apelo de massas, centenas de milhares de centro-americanos e sul-americanos têm sido mortos em decorrência da guerra às drogas. Como gringo de um país que é ardoroso defensor dessa política, poucas coisas me parecem mais imorais (e a concorrência é acirrada)." (Capítulo 5 - Colapso Moral)

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