segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Os Generos Alimenticios Deve Ser ao Alcance de Todos

Escultura Ugolino e seus Filhos, de Jean-Baptiste Carpeaux. A expressão de desespero de um pai  sem ter como alimentar seus filhos.


Um século depois do Brasil descrito em Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, Quarto de Despejo, o diário de Carolina Maria de Jesus nos mostra o imprinting da lógica segregadora brasileira. Certamente não é só o Brasil que tem essas desigualdades. Muitas sociedades no mundo são divididas assim. Na British Airways, funcionários não-britânicos não ascendem aos postos mais altos nas cabines das aeronaves. Quem é classificado como equipe de classe econômica, no dia da admissão na companhia, não vai nunca servir na executiva. Mas aqui é tudo mais agudo. A miséria é sistêmica.

Mesmo se considerarmos que muita coisa já melhorou – por exemplo, o mais comum nas grandes favelas hoje são casas de alvenaria sem acabamento; papelão e tábuas são mais raros -, o sistema continua enviesado para desfavorecer os desfavorecidos.  Carolina trabalha sempre e está sempre em falta. É a escravidão por dívida. “Cato papel (...), permaneço na rua o dia todo. E estou sempre em falta.” Carolina não tem como sair desse ciclo nefasto de retroalimentação. A perpetuação da pobreza.

Olhando a partir de uma perspectiva sócio-econômica, o livro é um poço de exemplos sobre a perpetuação da pobreza. Logo de cara, os filhos de Carolina são criados sem pai. Mais do que isso, a situação de privação em que eles vivem é precária mesmo em comparação com outros núcleos de famílias monoparentais, pois não contam com avó, tias ou outros parentes que possam auxiliar no cuidado com as crianças. Essas crianças não têm supervisão ou orientação de adultos durante o dia, então é provável que eles cresçam com menos amor durante as horas em que estão sem a mãe. Isto faz muita diferença por exemplo no rendimento escolar delas. Carolina quando chega está cansada demais para ouvir os filhos contarem o que aconteceu no dia, o que aprenderam na escola, valorizarem a própria narrativa e a própria brincadeira. O processo mesmo de subjetivação deles está marcado por essa falta de conversa, de palavra, de legitimação. Neste ponto, quando pensamos que muitas famílias ainda vivem assim, acaba se tornando fundamental a defesa da escola em tempo integral, pois garante, minimamente, alguma presença adulta qualificada para a criança nas horas em que seus pais não estão lá.

Um fator que influencia muito isso, e que não é tão difícil assim de resolver, é a qualidade do transporte público. O tempo gasto no trajeto casa/ trabalho/ casa em última análise é tempo roubado da convivência entre pais e filhos. Este tempo adiciona qualidade à formação das crianças, e pode ser considerado um dos principais fatores iniciais da cota subliminar para brancos e não-pobres. Mas essa cota começa intra-útero.  A nutrição da mãe, a qualidade da assistência pré-natal, o álcool (pessoalmente acho que formas subclínicas de síndrome alcoólica fetal estão presentes de maneira significativa como potenciais redutores de inteligência*).

Depois que nasce, o período de crescimento e formação do bebê requer proteína. Cérebro nenhum vai se desenvolver bem se não tiver um aporte regular de proteína e energia. A perpetuação da pobreza é a baixa ingesta de proteína na infância, que grava os limites cognitivos no hardware de Vera Eunice, João José e José Carlos. Depois de uma determinada idade, o raciocínio deles não vai ser comparável ao dos filhos da dona Julita.  A perpetuação da pobreza se grava no mármore do desenvolvimento cerebral. Impossível não lembrar de Admirável  Mundo Novo, de Aldous Huxley, um dos meus autores favoritos. No mundo futuro do livro, todas as pessoas são geradas e gestadas em laboratório. A partir de determinações superiores guiadas pelas necessidades do sistema, são gerados indivíduos mais ou menos inteligentes. Analogamente, dá para pensar que o capitalismo hoje, com seus mecanismos geradores e perpetuadores de pobreza, atua como um fator produtor de doença e redutor de qualidade daqueles que lhe servirão mais tarde como trabalhadores e consumidores.

O trabalho extenuante de Carolina não garante o mínimo de conforto a ela e a seus filhos. É a prova viva da falsidade do discurso da meritocracia. Por um lado a história de relativo sucesso da Carolina reforça esse discurso. Ela tinha uma natureza que a distanciava dos “favelados”, de quem ela tão amiúde tentava se destacar, ouvindo valsas vienenses por exemplo, mas reconhecendo que também era uma. Carolina se esforçou e conseguiu, por sua índole inteligente e criativa de escritora, se livrar da pobreza. Então permanecer pobre é uma questão de escolha pessoal. Quem não percebe os próprios privilégios pode pensar assim.

O livro faz pensar muito também na questão da mulher. São as mulheres que trabalham e que protagonizam as atividades na favela. Quando se fala em famílias monoparentais, pode-se deduzir que a tal “mono” é uma mulher. As mulheres que vão pegar água na bica. A violência contra a mulher é aberta, e poucos se comovem com histórias corriqueiras de surras, e quase assassinatos. Não conseguindo armazenar dinheiro para viver, Carolina armazena paciência e resignação. Ela se sente sozinha, apesar de estar rodeada de pessoas na mesma condição. O enquadramento capitalista das relações faz com que cada um cuide dos seus próprios afazeres e destinos. Em momento algum no livro é citada alguma forma de associação de moradores ou outra agremiação qualquer voltada ao bem coletivo. Há cacos de uma frágil teia de cooperação, de uma microeconomia de crédito e confiança desmonetarizada, mas que não passa disso, cacos. Pensei agora que solidão e solidariedade têm o mesmo radical.

Carolina desfaz também o mito de que pobre não se preocupa com política. Seu diário tem algumas referências a políticos da época e a conversas sobre política dentro da favela. “O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. ” Foi um presidente que passou fome que tirou o Brasil do mapa da fome.

Muito bem, Carolina. Os generos alimenticios deve ser ao alcance de todos.

Talvez o aspecto mais chocante do diário seja o da fome. A fome na terra em que se plantando, tudo dá. A fome como intervenção humana no ambiente, na espécie. Não foi a seca, enchente, escassez. É o desperdício, a ganância, esse motor do capitalismo que deve estar sempre em expansão. Carolina cita a especulação com linguiça. O frigorífico produz linguiça demais, não vende, guarda até o último momento e joga fora, quando não pode mais vender. O valor de uso mais precioso, o do alimento, é zerado e vai embora quando acaba o valor de troca. Se não pode mais vender é lixo. E se é lixo, é comida para Carolina e seus filhos. E para evitar a presença de indesejáveis, inutiliza-se a comida no lixo com creolina. Hoje na enseada de Botafogo vi uns vinte urubus em volta de uma carcaça de tartaruga. Lembrei do documentário Ilha das Flores, acho que do Jorge Furtado (quem não viu, veja. É obrigado). E também em todos os catadores dos lixões, quase indistinguíveis dos urubus.


*A Síndrome Alcoólica Fetal é um conjunto de manifestações presentes em casos em que a mãe ingere quanidades significativas de álcool durante a gestação. O quadro clássico inclui alterações no formato da face (que podem desaparecer com o crescimento), hiperatividade, desatenção e retardo mental. Minha hipótese é que, enquanto esses quadros mais clássicos precisam de grandes quantidades de ácool para se manifestarem, formas mais sutis, talvez apenas como limitadores do desenvolvimento intelectual, possam estar presentes em proporções variadas mesmo quando não se bebe tanto assim. A isso se alia o fato de que o alcoolismo prejudica a ingesta e a absorção de determinadas vitaminas, que são ainda mais importantes para a gestante e seu bebê. 
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