No livro “Quarto
de despejo” o leitor é convidado a acompanhar o cotidiano de uma moradora de
uma favela dos anos 1950 a partir de trechos de um diário escrito por ela e
editado por um jornalista. A protagonista é Carolina, moradora de Canindé,
extinta favela de São Paulo. Não é uma leitura muito agradável. Seja pela
forma, com erros de ortografia e concordância, seja pelo conteúdo, obviamente
incômodo. Um aspecto marcante é o quanto o texto é repetitivo.
Acho que o
primeiramente me fez refletir foram as diferenças entre o que se esperaria
encontrar no diário de uma favelada de hoje e o que encontramos no de Carolina.
Chama atenção a rotina de pegar água numa bica, a frequência com que a fome
aparece e a ausência do poder paralelo do tráfico ou da milícia. Além disso, o
alcoolismo é um problema citado, mas não há menção a outros tipos de droga.
Sobre a
violência, ela aparece na forma de brigas e da indigência em si, mas a polícia
aparece como uma instância de mediação. Embora a polícia não se revele capaz de
resolver de fato os conflitos da favela, está longe de ser considerada causadora
de problemas. O tema do abuso do poder
policial não aparece.
Outros
aspectos parecem ainda ser familiares aos atuais favelados, como a falta de
saneamento e a sujeira (“Ao redor da torneira amanhece cheio de bosta. E quem
limpa sou eu. Porque as outras não interessam”), a sensação de marginalização
social, de estar no “quarto de despejo” e a descrença nos políticos.
Sobre Carolina
em si, é interessante ver como ela pensa sobre as coisas e tentar imaginar de
onde ela tira suas ideias. Ela fala muito pouco do passado e de perspectivas
para seu futuro. O texto se mantém fiel à proposta de ser um diário de se ater
ao presente, de forma quase obsessiva. Mas sabemos que ela migrou de Minas para
São Paulo e que gosta de ler jornais e livros, embora deteste gibis, a ponto de
surrar seu filho por estar lendo um. Em um trecho ela diz que havia “pegado um
livro para ler”, mas não fica claro onde exatamente ela consegue seus livros. Em
outro momento ela cita uma conversa com um funcionário da livraria Saraiva,
deixando suspeitar que ela compre livros lá.
Sobre seu
círculo íntimo, quase não há menção a familiares, exceto seus filhos, com
cujos pais não mais se relaciona, apesar de o “pai da Vera” ser citado algumas vezes. Diz ter se iludido com homens, mas tem um crush que também mereceu ser citado nos seus relatos.
Parece haver
por parte de Carolina um respeito pela autoridade. Inclusive é ela que com
frequência chama a polícia ou intervém em brigas dos vizinhos. Ela é solidária
com os mais pobres que ela e parece se sentir mais responsável que os outros
favelados. Em alguns momentos ela se coloca diretamente como diferente deles,
fazendo críticas ao comportamento “dos pobres”. Ela diz que “nas favelas os
homens são mais tolerantes, mais delicados. As bagunceiras são as mulheres”. Ela
não fala como se ela mesma fosse da favela e sim como uma observadora de fora.
Isso chama a atenção e se repete em vários outros momentos do livro.
Carolina
parece não ter uma religião definida. Não demonstra ter simpatia pelos “crentes”.
Ela cita que “os favelados zombam dos conselhos” dos crentes e jogam pedras no
barracão onde eles pregam. Ou seja, diferentemente dos dias de hoje, naquele
tempo as Igrejas evangélicas não eram muito populares. Por outro lado, Igreja Católica
se faz mais presente na vida da favela. Carolina cita que os freis promovem
cinema gratuito e tratamento médico. Ela diz não entender como “o Frei Luiz descobriu
que os favelados têm chagas”, revelando sua sensação de estarem desamparados
pelas autoridades e expressando bem a realidade da época: os pobres não tinham
direito à saúde, só podendo contar com a caridade das “Santas Casas de
misericórdia”. Não era direito, era misericórdia (mais ou menos como no governo
Temer).
Talvez a
religião com a qual Carolina mais se identifique seja a espírita. Ela conta que
no Centro Espírita as pessoas a recebem sorrindo, sem distinção por sua classe.
Lá ela recebe doações de agasalhos e diz gostar de ouvir as palavras de um
religioso. Mas Carolina não demonstra ser seguidora propriamente do
espiritismo, podendo, afinal, ser considerada como cristã “católica não
praticante”.
Notam-se também os preconceitos de Carolina. Ela afirma
que os portugueses não têm educação, são obscenos, pornográficos e estúpidos e
pensam ser mais inteligentes que os outros. Sobre um espanhol, diz que não
admite que estrangeiro grite com ela. Sobre os ciganos, ela diz que “o cigano é
pior que o negro”, mas não fica muito claro o que ela quer dizer com isso. Em
outro momento afirma que os ciganos são violentos e diz: “mil vezes os nossos
vagabundos do que os ciganos”.
Vale imaginar
também o que Carolina pensa sobre os negros, lembrando que ela própria é negra.
Uma pista é o contraste com o que ela pensa sobre os judeus. Ela diz que os
judeus são perseguidos por serem inteligentes e que o profeta Moisés teria intercedido
por eles junto a Deus e que, devido a esse fato, os judeus são quase todos
ricos. “Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós”. Essa
passagem revela tanto uma sensação de inferioridade intelectual e idealização
dos judeus, como também um conceito ingênuo, quase infantil, de Deus. Curioso
ela ter preconceito com estrangeiros e ciganos e ter os judeus em tão boa
conta. Sabemos que entre o ano de 1929, em que nos deparamos com o
antissemitismo aberto de um consagrado intelectual como o Alcântara Machado, e
1955, ano dos relatos de Carolina, fatos significativos aconteceram; mas, de
qualquer forma, achei surpreendente.
Além desses
trechos, a questão racial pouco aparece. Ela chega a citar que um vizinho seria
um “negro preto” e não fica claro o que isso significa exatamente. (edit: depois de ler o texto do Igor, em que ele cita a passagem em que Carolina se orgulha de sua negritude, eu me lembrei disso. Bem, não vou problematizar isso agora...rs).
Sobre
política, também temos apenas algumas pistas sobre as ideias de Carolina. Ela diz
que as mulheres da favela fazem intriga como “Carlos Lacerda”, famoso opositor
de Getúlio Vargas, mas não fala nada do próprio Vargas. Ao citar homens
simpáticos ao comunismo ela diz que o “custo de vida faz o operário perder a
simpatia pela democracia”, mas também não deixa clara a sua opinião. Em outro
trecho ela compara os atacadistas paulistanos aos imperadores romanos, e diz
que eles atacam os pobres pela fome da mesma forma que os imperadores atacavam
os cristãos. Uma imagem bastante forte, por sinal. É intrigante o trecho em que
ela cita ter ficado nervosa ao contemplar o “dinheiro de alumínio”, que ela
critica por valer menos que os “gêneros”. Confesso que não entendi e gostaria
de entender (rs).
Para
finalizar, vale lembrar que Carolina fala em vários momentos, desde o início
dos relatos, que deseja publicar seu diário. Não fica muito claro o porquê
desse desejo. Em certos momentos ela parece usar isso como uma defesa contra
algumas pessoas, que demonstram medo de serem difamadas. Não me lembro de ter
lido alguma passagem em que ela diga que o diário seria uma forma de ela
melhorar de vida ou ficar rica. É possível que ela tivesse essa motivação, mas,
novamente, o foco em relatar o cotidiano é o que fica do livro. Carolina teima em estar no presente, e teima em se fazer presente no mundo por meio de sua escrita. Mais do que os grandes escritores que saem da vida pra imortalidade literária, Carolina sai da insignificância pra imortalidade. Um feito e tanto.
PS: gostaria de contar uma
coincidência. Estive em São Paulo no início do ano e visitei o Ibirapuera e lá
na parte de fora do museu Afro Brasil eu vi uma exposição em homenagem
justamente à Carolina Maria de Jesus. Eu passei muito rapidamente e até fiz
questão de tirar foto com um livro gigante e pensei em depois procurar saber
mais sobre ela. Porém, chegou a roda viva e me esqueci completamente disso, inclusive
tinha esquecido o nome dela (sou péssima com nomes) só tendo lembrado desse
fato agora, depois de ter lido o livro!
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