domingo, 6 de março de 2016

Bem-vindo ao deserto do real




Não consigo imaginar uma leitura mais atual do que o livro "Como Conversar com um Fascista", da Marcia Tílburi.

Vivemos um cenário político turbulento em que a sociedade encontra-se polarizada. Cada lado apruma-se em debates ferozes para alegar que as ações do grupo político que defende são para a "defesa da democracia". Seja pelo argumento do combate à corrupção, seja pelo argumento da defesa do mandato da presidente eleita, a disputa sempre termina na defesa da democracia (alguns usam o pomposo nome "Estado democrático de Direito"). Porém, tenho pensado sobre o que é esta democracia em que vivemos, e se ela é real.

A reflexão me traz à lembrança a seguinte passagem do livro "Bem-Vindo ao Deserto do Real", do Slavoj Zizek: 

"Numa antiga anedota que circulava na hoje falecida República Democrática Alemã, um operário alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que toda correspondência será lida pelos censores, ele combina com os amigos: “Vamos combinar um código: se uma carta estiver escrita em tinta azul, o que ela diz é verdade; se estiver escrita em tinta vermelha, tudo é mentira”. Um mês depois, os amigos recebem uma carta escrita em tinta azul: “Tudo aqui é maravilhoso: as lojas vivem cheias, a comida é abundante, os apartamentos são grandes e bem aquecidos, os cinemas exibem filmes do Ocidente, há muitas garotas, sempre prontas para um programa –o único senão é que não se consegue encontrar tinta vermelha ”. Neste caso, a estrutura é mais refinada do que indicam as aparências: apesar de não ter como usar o código combinado para indicar que tudo o que está dito é mentira, mesmo assim ele consegue passar a mensagem; como? Pela introdução da referência ao código, como um de seus elementos, na própria mensagem codificada. Evidentemente, este é o problema padrão da autorreferência: como a carta foi escrita em tinta azul, todo o seu conteúdo não teria de ser verdadeiro? A resposta é que o fato de a mensagem ter mencionado a inexistência de tinta vermelha indica que ela deveria ter sido escrita em vermelho. O interessante é que esta menção à inexistência de tinta vermelha produz o efeito da verdade independentemente da sua própria verdade literal : ainda que houvesse tinta vermelha, a mentira de ela não existir é a única forma de transmitir a mensagem verdadeira naquela condição específica de censura. Não é esta a matriz de uma crítica eficaz da ideologia –não somente em condições “totalitárias” de censura, mas, talvez ainda mais, nas condições mais refinadas da censura liberal? (...)

Num diálogo clássico de uma comédia de Hollywood, a mocinha pergunta ao namorado: “‘Você quer se casar comigo?’ ‘Não.’ ‘Ora, pare de enrolar! Quero uma resposta direta.’” De certa forma, a lógica subjacente está correta: a única resposta aceitável para a moça é “Quero!”, e, assim, qualquer outra coisa, inclusive um “Não!” definitivo, é percebida como evasão. A lógica oculta é evidentemente a mesma que está por trás da escolha imposta: você tem a liberdade de escolher o que quiser, desde que faça a escolha certa. Não seria este o mesmo paradoxo utilizado por um padre numa discussão com um leigo? “‘Você acredita em Deus?’ ‘Não.’ ‘Pare de fugir da discussão. Quero uma resposta direta.’” Mais uma vez, na opinião do padre, a única resposta direta é afirmar a crença em Deus: longe de ser vista como uma posição diretamente simétrica, a negação de crença por parte do ateu é vista como uma tentativa de evitar o problema do encontro divino. E não é exatamente o que se dá com a escolha entre “democracia ou fundamentalismo”? Não é verdade que, nos termos desta escolha, é simplesmente impossível escolher o “fundamentalismo”? O que é problemático na forma como a ideologia dominante nos impõe esta escolha não é o fundamentalismo, mas a própria democracia : como se a única alternativa ao “fundamentalismo” fosse o sistema político da democracia parlamentar liberal." (Bem-vindo ao Deserto do Real, Slavoj Zizek, p. 5-6)

Tenho pensado, na conjuntura atual, o quanto nossas ações - políticas, profissionais, acadêmicas e como cidadãos - contribuem (ou não) para uma democracia de fato, e se o que vivemos é uma democracia real. Não me parece que sejam muitas as escolhas: mesmo com a liberdade do voto que temos, o sistema político parece se constituir numa rede tão intrincada de conjunturas pré-determinadas que, qualquer que seja a escolha que façamos, apenas significará uma reprodução das estruturas que já existem. 

Haverá alguma escolha para a transformação da nossa realidade?

Haverá alguma escolha?

No contexto de polarização atual, cada lado do espectro político acusa o oponente de estar "destruindo o país". Vemos um nível crescente de intolerância e ódio, com cada lado acreditando que, ao "vencer" o embate, o país retornará a crescer e teremos uma democracia estável, com crescimento econômico e instituições mais fortes e menos corruptas. 

Será possível? 

Será que, com o nível de desgaste que se observa na conjuntura atual, haverá alguma possibilidade de voltarmos a ter uma democracia real? 

E será que algum dia tivemos esta dita democracia real?

Me pergunto se haverá alguma lição a se aprender com a turbulência que vivemos hoje. Talvez, nos anos que virão, possamos tirar algo de construtivo de todo este processo. Porém, por hora, só o que enxergo é o terrível processo de desconstrução do outro. A impossibilidade de enxergar o que de positivo pode ser tirado do discurso de cada lado - eu mesma tenho muita dificuldade em fazer este exercício (uma excelente tentativa pode ser lida aqui) . E o quanto somos levados a crer que o outro é o errado, o vândalo, o corrupto, o míope, o herege. O que nos traz a uma das principais construções do livro da Marcia Tílburi (a transcrição é longa, mas vale a pena):       

"O capitalismo exige uma encenação e ela custa muito caro. O ato de falar e até mesmo de escrever, pelo qual expressamos pensamentos, também entra nesse jogo que é, afinal, um jogo de linguagem. Por isso, no capitalismo se cuida tanto da ordem do discurso (o que antigamente era chamado de retórica). A regulamentação das falas e dos textos visa a não prejudicar o sistema. Neste contexto, as palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião. Neste contexto, as palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral, no púlpito tecnológico da televisão). Assim como, em sendo questionada, a palavra “Deus” gera o estigma do herege ou do ateu, a palavra “capitalista”, quando questionada, gera o estigma do “comunista”, ele mesmo tratado como um tipo de ateu em sua descrença crítica do sistema. O capitalismo depende da criação de estigmas contra tudo o que vem a criticá-lo: pode-se usar a palavra “vândalo”, o termo “terrorista” ou qualquer outro com sentido invertido. Assim, a religião inventou o diabo e as mais diversas figuras de oposição. No esquema discursivo do capitalista a estigmatização protege da crítica. O discurso é a arma de proteção do capitalismo. Os críticos, por sua vez, temem dizer “capitalismo” para não serem acusados de “comunistas”. A ousadia de dar nome é perigosa como a pronúncia do nome de Deus em vão. Ou do nome do diabo. O antagonista é sempre estigmatizado. Palavras mágicas, dogmas que revelam pretensas verdades e estigmas que afastam supostas mentiras, que esconjuram. Eis do que é feito o plano discursivo da ordem capitalista. Ele é um sistema de verdades, assim como o é a religião.


A sedução capitalista que escamoteia a opressão organiza-se na forma de uma constelação de palavras mágicas, por meio das quais o falante e o ouvinte acreditam realizar todos os seus desejos. Palavras como felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito, são todas mágicas. Uma dessas palavras mágicas usadas pelo capitalismo é a palavra “democracia”. Antidemocrático, o capitalismo precisa ocultar sua única democracia verdadeira —a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade —em nome da aparência de outra que é feita com as palavras mágicas. Aristocrático, ele acusará a crítica de ser antidemocrática, pois ele faz parecer que o monopólio da democracia é seu. Assim como todo sujeito autoritário reserva para si certas verdades, acontece com o todo do regime, pois esta reserva faz parte de sua lógica. Como véu acobertador de manejo simples, a democracia usada em sentido mágico perde sua história carregada de importantes significados políticos. Em seu fundo bem oculto, no tempo presente, sobrevive alguma coisa que ainda parece razoável, algo que desejamos, um governo de todos, direitos e igualdade social. Ao mesmo tempo, é evidente que há uma mentira concreta na democracia: a estabilização do capitalismo ou de outros regimes autoritários para a qual a palavra serve de acobertamento. O casamento entre opressão e sedução promete realizar a mágica capitalista em um fiat lux redentor. A democracia nesse contexto é também um reducionismo, mas ainda não achamos um nome melhor para uma utopia possível(...)

Creio que, neste momento brasileiro, poucas pessoas que agem em nome da democracia estejam se questionando sobre o que ela realmente seja. É provável que poucos pratiquem o ato de humildade do conhecimento que é o questionamento honesto. O questionamento é uma prática, mas é também qualidade do conhecimento. É a virtude do conhecimento. É essa virtude que nos faz perguntar sobre o que pensamos e assim nos permite sair do nível dogmático para o nível reflexivo de pensamento. Essa passagem da ideia pronta que recebemos da religião, do senso comum, dos meios de comunicação, para o questionamento é o segredo da inteligência humana, seja ela cognitiva, moral ou política." (Como Conversar com um Fascista, Marcia Tílburi, p. 57)

Não tenho nenhuma grande conclusão ao fazer a leitura do livro. 

Tenho apenas mais dúvidas, e muito receio pelo que virá. Não acho que teremos uma democracia mais sólida depois deste processo destrutivo que vivemos hoje - na verdade, creio que nossa frágil democracia corra um sério risco (um bom lembrete do risco que corremos aqui). Tenho dúvidas se o que tínhamos antes desta crise era uma democracia de fato e o quanto de positivo podemos resgatar do que existiu. O que vejo é um processo sem volta, de demonização do outro e da política, através de um jogo imerso em uma espetacularização que utiliza "palavras mágicas" como "combate à corrupção" e "defesa da ética" - que perdem seu sentido ao serem utilizadas em um processo cada vez mais corrompido, de consequencias imprevisíveis.  Não vejo amadurecimento, não vejo democracia, não vejo diálogo, não vejo aprendizado. Vejo apenas mais dúvidas, ódio e a possibilidade de um regime fascistóide. 

Não vejo nada de bom.

Bem-vindo ao deserto do real.

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