domingo, 6 de março de 2016

Márcia Convida



Veja aqui um video bem humorado sobre discussões.

Nos anos 90, lembro que o SBT transmitia um “programa da Márcia”, algo assim, apresentado por Márcia Goldschmidt. O programa era basicamente uma sala-arena com sofás, em que as pessoas resolviam suas diferenças, e debates rapidamente degeneravam em bate-bocas, às vezes culminando com ataques físicos.

Lendo Como Conversar Com Um Fascista – Reflexões Sobre o Cotidiano Autoritário Brasileiro, me senti recebendo de Márcia, Tiburi, não Goldschmidt, um convite para chamar os fascistas para a sala. Para não me furtar ao diálogo. Para não replicar discursos que apagam o diálogo. O primeiro convidado foi o fascista que mora em mim.

Traz o desafio de se propor um “ato de humildade cognitiva”, de se colocar a entender o outro, a viver as conversas — que podem se tornar diálogos — como uma oportunidade de exercer uma curiosidade, sem aplicar saberes estabelecidos a priori. Para haver um diálogo minimamente respeitoso, é preciso se despir de um saber dado, e entender que o outro vai ter algo a ensinar, ou apenas que eu não sei de antemão o que o outro vai dizer, ou que eu tente não misturar o argumento com a pessoa. Uma curiosidade humilde, eu me interesso sobre a capacidade de o outro me surpreender, de me ensinar, que o que eu sei não pode ser completo.

Márcia tece uma complexa rede entre conceitos de filosofia, comunicação, política, psicanálise e outros campos do saber para tentar dar conta deste fenômeno que estamos vivendo, que não se mostrou por completo, e talvez essa completude jamais chegue para nós, um fenômeno que não sabemos exatamente o que é. Muito disto Márcia coloca como sendo novidade, julgando pela frequência com que aparece a expressão “hoje em dia”. Um questionamento inicial seria, portanto, será que este fenômeno — ódio, fascismo ou outro nome — de fato está ressurgindo? Ou será que nunca foi embora? Analogamente, o livro se concentra no espaço brasileiro, mas é difícil entender o contexto sem incluir na teia, na rede, perspectivas transnacionais, que abarcam o capitalismo como um acontecimento, um modo de produção que não conhece fronteiras, mesmo que se adapte aos mais diversos matizes culturais e nacionais.

A autora traça alguns juízos no livro que poderiam ter algum dado de pesquisa, alguma base mais sólida, em que pese se tratar de um ensaio, um pensamento. Quando ela diz que “o ódio está em alta”, não sei muito bem o que isso quer dizer, se há mais pessoas com ódio, se há mais crimes de ódio, de há mais ódio nas pessoas ou se simplesmente as pessoas estão se manifestando com mais ódio no dia-a-dia. Esta questão merece uma reflexão, que o livro não trouxe.

Essa rede tão ampla de campos do saber poderia ter facilmente tombado para um lado pedante e hermético, mas a grande habilidade de Márcia, na confecção, na artesania desse livro, foi justamente concatenar todas essas abas, todos esses vetores num texto praticamente sem jargão, acessível.

Um dos fios dessa rede acaba sendo a saúde mental, a psicologia, psiquiatria, psicanálise, enfim, ao longo do livro várias vezes o entender da mente é convocado na trama de argumentos. Este foi, portanto, um convite de Márcia que me atinge especialmente, considerando esta ser a minha área de formação e trabalho.

Sempre que se fala em fascismo ou movimentos de massa em geral, há alguma explicação ou pontuação psi a ser colocada. Assim que li o termo paranoia, um dos primeiros a aparecer no livro, achei que valeria a pena fazer uma ressalva: é preciso ter muito cuidado quando extrapolamos dados ou conhecimentos estabelecidos individualmente — como a maior parte do saber psi — para massas ou coletivos, sob pena de simplificar problemas muito complexos. Ela mesma aponta que não dá para considerar a paranoia do fascista como uma doença, ou sintoma de doença, mas o termo é associado a uma patologia que pode indicar um tratamento específico. Falar de paranoia coletiva é bem diferente de um falar sobre um grupo de indivíduos, cada um com paranoia.

Quando se lida com questões de opressão, por exemplo de assédio moral (uma espécie de bullying no trabalho, e.g. quando um chefe inferniza de propósito alguém no trabalho), obviamente estamos falando de um indivíduo que sofre na mão do assediador. No entanto, como ela aponta no livro, não se pode perder de vista que a pessoa que assedia o faz na medida em que é sustentado por todo um suporte social que apoia que a vítima seja, por exemplo, explorada em seu trabalho, o mesmo suporte social que dilui a responsabilidade por um linchamento ou por incendiar um índio ou pessoa dormindo na rua. No modo de produção capitalista, com uma grande reserva de mão-de-obra (onde cada vez menos especialização é necessária para a maior parte dos empregos), se uma pessoa adoece ela pode ser facilmente substituída por outra, que também vai ou adoecer, ou se adaptar às normas exploratórias da rotina.

O ponto mais bonito da área psi a ser abordado na questão do fascismo, a meu ver, é a questão ada alteridade. Há várias formas de se encarar a formação da noção de outro dentro da psicanálise, e, no modo como entendo, a noção de outro vem lentamente, à medida que o bebê sente que ele não tem controle de tudo, que o peito da mãe não aparece sempre que ele está com fome. Que há outras pessoas que têm vontades e realizam atos que não são só dar de mamar para ele, coisas imprevisíveis. O reconhecimento do outro se dá pela diferença e pela negação, isto é, o outro existe na medida em que eu entendo que vontade dele pode ser diferente da minha. Para isto, o bebê precisa ter alguma segurança, não sentir a alteridade como algo ameaçador, invasivo. No adulto, reconhecer o outro é entender que “eu sou o outro de um outro”, uma ponte para a empatia, para a capacidade de se colocar no lugar do outro. O fascismo é apontado então como a ausência dessa possibilidade, o fascista não considera o outro como um semelhante. Apenas com o reconhecimento de um outro, do lado de fora, é possível se relacionar de maneira minimamente saudável com este outro. De maneira a respeitar a existência do outro como qualitativamente semelhante à minha. O amor é, então, um amor na diferença.  

E até o amor foi incluído na transformação da felicidade em consumo. No capítulo do “Eu Te Amo”, esta expressão é descrita, muito corretamente, como desgastada e até esvaziada de valor pela repetição excessiva. Vende-se a experiência de dizer “eu te amo” como num filme americano. Hoje posso dizer que “eu te amo” tira o valor do amor, que pode ser expressado mais valiosamente com outras expressões, inclusive em um filme, “Melhor É Impossível”, quando o “eu te amo” foi, em um diálogo, substituído por “você me faz querer ser uma pessoa melhor”.

A propaganda esvaziou o “eu te amo”. Podemos dizer que a propaganda é o centro do capitalismo. É pela propaganda que acreditamos ter necessidades que não temos, que compramos soluções para problemas que não temos. O poder da linguagem, os processos de linguagem (que, ao contrário do que Márcia diz, não se igualam aos processos mentais, que contêm bem mais que linguagem) esculpem o jeito de pensar e se portar. Os discursos de ódio e de exclusão são tão repetidos que de fato se tornam o modo de pensar de uma sociedade. Achamos que estamos nos informando para nos libertar, mas na verdade a informação que nos é passada não liberta. Acreditamos que nos apropriamos de informação, mas na verdade ela vem pronta e se apropria de nós. Neste aspecto, considero essencial, e até incluiria no plano de educação de Manoel Bomfim um amplo acesso não somente a informação ou conhecimento, mas na capacidade estruturante de avaliar criticamente dados e análises que muitas vezes nos chegam prontos. Avaliar criticamente não significa ser especialista, mas aprender a pesquisar fontes, a argumentar e contra-argumentar, levando em conta quem e qual instituição estão falando, sem degenerar para refutações ad-hominem ou outros tipos de argumentos falaciosos. A qualidade da argumentação em detrimento do poder da retórica começou a ser questionado, no pensamento ocidental, na Grécia Antiga, e ainda hoje vemos conceitos falsos sendo propagados por má-fé.

A propaganda cria, então, um “nexo direto” entre o que se diz na TV e o que se fala em casa. A ignição vertical encontra a sustentação horizontal, como brilhantemente formulado pela autora. Outro dia vi um post no facebook explicando que os inimigos da sociedade não são os ricos, mas sim os criminosos, que estão nas mais diversas classes sociais. Ora, aqui há uma grande confusão de argumentação, manipulada para esvaziar o conceito de luta de classes, primeiro inferindo que o rico é considerado inimigo, e depois passando do problema da concentração de renda e riqueza para o problema da criminalidade, que, embora de alguma maneira relacionados, não são a mesma coisa. A classe média é constantemente manipulada a acreditar que o que a ameaça é o pobre, quando de fato quem poderia e deveria pagar mais impostos e ter menos privilégios são a camada mais abastada.

Este uso da propaganda me remete — como tantas outras características do mundo atual — ao romance 1984, de George Orwell. Nele, escrito em 1948 projetando um futuro com uma sociedade altamente controlada, Orwell narra a invenção de uma nova língua, Novilíngua (newspeak no original). Em novilíngua as regras gramaticais são todas simplificadas. Os nomes dos ministérios são adequados às contradições, o ministério da Guerra é chamado ministério da Paz, ou Minipax (apenas um pouco mais novilíngua que ministério da Defesa), e o ministério do Interior, responsável pela polícia política e censura, era chamado de ministério do Amor, ou Miniamor. Novilíngua seguia os preceitos do duplipensar (doublethink), onde conceitos opostos eram vistos como conciliáveis, numa distorção da lógica. Algo como “direitos humanos para humanos direitos”, ou “heterofobia”.

Em “Minha Luta” (Mein Kampf, livro seminal do nazismo), Hitler funde uma série de argumentos falaciosos, usando conceitos de Darwin de maneira rasa e errada, mas que encontraram uma grande ressonância no povo germânico da época. Todas as vezes que alguém fala “tem que jogar uma bomba no Congresso e matar todo mundo”, lembro que o próprio Adolf mandou incendiar o Reichstag (parlamento alemão). No livro a lógica de Darwin é torcida para caber no plano genocida de supremacia ariana de Hitler. Os judeus e outros marginalizados (inclusive em muitos campos de concentração os judeus nem eram maioria), foram dotados então de altíssimo grau de matabilidade.

Considero a “matabilidade” o principal conceito posto por Márcia nos ensaios. Talvez simplesmente por vermos escrito em todo código de lei liberal que “todos são iguais perante a lei”, fica claro que não é bem assim, senão não precisaria escrever. O termo matabilidade revela o ponto a que o ódio chega, aponta a progressão do discurso de desvalorização de determinado indivíduo ou segmento da sociedade até seu assassinato.

A matabilidade é como se faz permanecer hoje o direito ao privilégio, privilégio de classe, raça, gênero etc. Oficialmente não há castas nem segregação racial, mas negros morrem mais pelas mãos da polícia. Recentemente um estudante italiano foi encontrado morto no Egito. As principais suspeitas são de que ele tenha sido detido, interrogado, torturado e assassinado pela polícia. Alguns consideram que a polícia queria interrogá-lo e “errou na mão”, exagerando nas torturas e tornando o assassinato inevitável. Ora, errar a mão de tortura só é possível em um país onde a polícia se acha dotada de um poder supralegal e que seja autorizada, ostensiva ou tacitamente, a promover execuções extrajudiciais quotidianamente. Mais de uma vez ouvi histórias de policiais que se oferecem para matar criminosos presos, por exemplo, assaltando uma pessoa na rua. A decisão fica sendo da vítima (“dona, se a senhora quiser a gente pode dar um jeito nele”). Mas, em muitos casos, o processo é concluído na hora em que o policial decide sacar a arma e atirar para matar quando chega em um bairro de matáveis. O disparo e a morte são apenas a execução da pena já decidida, faltava só escolher o réu.

O imprestável é o fraco, o pobre, a mulher, o pouco instruído. No Exército, dizia-se jocosamente que a conclusão de toda sindicância era “arquivem-se os autos e puna-se o mais moderno (o de patente mais baixa) ”. Na justiça poderíamos dizer puna-se o mais pobre, ou puna-se o mais preto (o que é quase a mesma coisa). Esta então é condenação dupla de quem nasce Geni, o imprestável, o matável.

O que Márcia propõe é ao mesmo tempo antigo, óbvio, surpreendente e revolucionário. O diálogo é muito antigo, do verbo Grécia Antiga. É óbvio porque ela destaca o papel transformador do diálogo, que é na verdade o seu papel mais relevante, senão o único. Duplamente surpreendente, pois me surpreendo com as minhas próprias dificuldades de dialogar e me abro à capacidade de me surpreender com a fala do outro, escutada de maneira respeitosa, com curiosidade e sem rejeitá-la a priori, a partir de conceitos pré-formulados ou ad hominem.

O livro tem o grande mérito de ser propositivo, o que não é comum em ensaios filosóficos, especialmente porque a construção do diálogo é algo possível, tangível, no elevador, no taxi, no trabalho, na mesa de jantar. Nem sempre ele vai ser concluído, mas isso importa menos. O que importa mais é criar um campo de troca, um espaço potencial de troca, onde haja diálogo, e não discurso que se furta ao diálogo. Um novo processo tropicalista antropofágico, em que todos possamos ter acesso a ideias, criá-las, digeri-las e pensar a respeito delas, devolvendo reflexões,  e não apenas as repetições do conhecimento formulaico da pré-história, onde todo o saber estava contido em poucas histórias memorizadas (por exemplo os poemas épicos de Homero). A versão atual dos épicos talvez sejam os chavões criados por apresentadores de TV e colunistas de jornal, que são capazes de gerar crises e perpetuá-las usando o ódio como instrumento. Portanto, o desafio se coloca também em como criar um pensamento crítico, como tornar plural o influxo de informações — tanto no plano individual/singular, por exemplo o modo como cada cidadão tem acesso à informação, quanto coletivamente, como na regulação econômica dos meios de comunicação.

O capitalismo sem regulação sequestra a democracia, pois o dinheiro e o lucro penetram em todas as relações se não mantivermos uma vigilância constante. O dinheiro compra o poder, dá as cartas nas eleições, dita as leis, que são viciadas para atender aos seus interesses. Se o mercado corre solto, caminha para o monopólio ou oligopólio, como já acontece com os meios de comunicação, em que poucas famílias são donas dos principais veículos de informação. Elas decidem o que entra na casa de cada cidadão, fazendo-o crer que aquela é a única opinião possível e correta.

A partir dessa presença do ódio, me pergunto se ele não deveria encabeçar um capítulo extra de um remake do Retrato do Brasil, já que possivelmente Paulo Prado vestiria a camisa da CBF batendo panela de sua varanda gourmet.

Outra pergunta fundamental que surge, mas não é desenvolvida no livro, é em que ponto devemos parar de convidar ao diálogo. Qual é ponto em que se deve deixar de tolerar os intolerantes, e transitar do “vamos conversar, quero entender melhor” para o “¡no pasarán!”?

Certamente nenhuma das questões que colocamos aqui tem uma resposta exata, da mesma forma que a democracia não é exata. Temos de estar disponíveis a escutar, a debater ideias e não a julgar biografias. A aceitar e promover o direito do outro à existência, à vida, à opinião e ao respeito.



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