Estou agora com essa mania de comprar as primeiras edições dos livros que decido ler. Isso me levou à edição impressa, de 1900, do livro “Minha formação”, de Joaquim Nabuco. Parece uma boa ideia, mas a capa não era original (o livro foi reencadernado), e as páginas de vez em quando descolavam do livro. Mas acho que vale a pena entrar em contato com a escrita original, especialmente quando se paga módicos 50 reais na Estante Virtual para um livro impresso no apagar das luzes do século dezenove.
A impressão que tive, nas
primeiras páginas, era a de que este seria um livro bem chato. O cerne do
livro, que é o de mostrar como Joaquim Nabuco tomou partido e, em certa medida,
liderança no movimento abolicionista, só aparece do meio para final. Talvez o
livro pudesse ser mais curto, mais direto ao ponto. Mas, a despeito do que
procuram aqueles que geralmente o leem, este livro não se chama “Como e porquê
me tornei um abolicionista”, mas, justamente “Minha formação”. É a história de
alguém que conta como foi a sua formação (dãããã) intelectual, estética,
política, humana e espiritual.
A discussão sobre a escravidão coloca
Joaquim Nabuco na vanguarda não apenas da ação política de seu tempo, mas
também da apreciação histórica de como este fenômeno, o da escravidão, seria
interpretado retrospectivamente. A célere frase de Joaquim Nabuco, e talvez a
mais famosa de seu livro, ainda é plena de sentido em 2016: “A escravidão permanecerá por muito tempo
como a característica nacional do Brasil.” (p. 216)
Entendo que essa é uma questão
que deve ainda ser muito discutida, mas justamente por talvez ser esse o
aspecto mais óbvio e de maior apelo na obra do autor, optarei por colocar o meu
olhar naquilo que aparece de maneira mais marginal ao longo do texto.
Em primeiro lugar, e justamente
por falar em olhar, vamos começar pelo ponto de vista do autor. É incômodo
perceber uma certa arrogância no discurso de Nabuco. Parece que estamos a ver a
história de alguém pouco humilde, que tudo viu, e tudo soube, e tudo fez. Mas
Joaquim consegue transformar essa mesma arrogância em humildade (ou quase),
quando demonstra total consciência disso. Destaco duas frases do autor: “O que me impediu de ser republicano na
mocidade, foi muito provavelmente o ter sido sensível á impressão aristocratica
da vida.” (p. 115) e “De certo, foi a
mais nobre, a mais augusta das causas; mas o facto é que eu era alli o
representante della, que em grande parte a dedicação, o sacrificio era por mim,
como era meu o triumpho, minha a carreira, meu o futuro politico...” Nelas,
o que se vê, para usar uma expressão contemporânea, é que Joaquim conhece
precisamente o seu lugar de fala. Ele sabe que, naquele momento, é dele a voz
de muitos que não conseguem se fazer ouvir e que, mesmo nessa condição, devido
aos seus privilégios, ele é quem colherá os louros de qualquer sucesso.
Esse lugar de fala é importante
não apenas para o objeto da ação política, mas também para a forma. Joaquim,
que começa a vida com uma postura mais revolucionária, opta, ao longo de sua
trajetória, por atuar de maneira mais institucional. É com uma certa tenacidade
(p. 156-157) que a luta de Nabuco se constrói no parlamento e nas altas esferas
(até ao Papa ele vai em prol da causa abolicionista), não nas ruas. Penso que é
importante que haja esses dois espaços, que devem ser vistos como
complementares. Uma coisa é a discussão acadêmica, a construção conceitual das
ideias, outra coisa são as ruas, a forma como as pessoas se organizam para
lutar por seus ideiais, etc. É claro que essas coisas se misturam, ainda mais
na contemporaneidade onde tudo se mistura de forma tão intrínseca que quase não
se consegue pensá-las isoladamente, mas é preciso garantir que cada um possa
lutar pelo que acredita à sua maneira.
Ainda quanto às lutas, é
interessante notar como Nabuco apresenta uma certa independência de pensamento.
É fácil pensar que quem é contra a escravidão (um sistema que gera privilégios
devido às características de cor/linhagem) seria também contra a monarquia (um
sistema que gera privilégios devido às características de cor/linhagem). Mas
ele não só não abraça a luta pela república, como defende de maneira enfática a
sua opção pela monarquia. E também é católico. Essas opções parecem
conservadoras, e talvez sejam, mas Nabuco parece operar numa certa dicotomia
que se vale dessas estruturas e posições conservadoras para tomar o partido das
causas liberais. Dessa maneira, segundo seu ponto de vista, é da monarquia que
advém mais democracia, é da Igreja Católica que advém a liberdade para o corpo negro
e é de uma vida aristocrática que advém um ideal progressista de liberdade.
Nesse sentido, é curioso perceber
que Joaquim Nabuco é dos primeiros autores que parece prestar alguma atenção ao
fato de que, além de negros, há também mulheres no Brasil. Em algum momento
(não marquei a página), quando fala de Nova York, Joaquim coloca: “O menino americano, e quando se diz menino
nos Estados Unidos entende-se a menina também (...)”. Já nas páginas
110-111, quando fala de sua opção monárquica, Joaquim afirma: “A monarchia moderna faria bem para
sustentar-se em promulgar a lei salica em sentido contrario, isto é, em
neutralisar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das
mulheres. Seria isso fazer politica experimental, que não se basearia sómente
no esplendido e pacifico jubileu da rainha Victoria e na calma relativa em
tempos crueis para a Hespanha da regencia de D. Maria Christina, mas no
profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma
mulher.” É claro que essa postura do autor pode ter mais a ver com um certo
marianismo, que entende a mulher como um grande colo sobre o qual os homens
podem se aconchegar (ainda mais conhecendo as suas opções religiosas) do que
com uma verdadeira opção pelo empoderamento feminino. Esse marianismo (não
confundir com marinismo; Maria é a mãe dos católicos e, Marina, a dos
evangélicos) também reverbera na figura da própria Princesa Isabel, cuja imagem
também foi construída a partir de uma aura de bondade, misericórdia e redenção.
Entretanto, mesmo apesar dessa santificação da mulher e, especialmente por
causa da passagem sobre o menino americano “entende-se
a menina também”, creio ser possível perceber algo como um proto-feminismo
no discurso de Joaquim, especialmente se considerarmos a forma como as mulheres
eram descritas nos ensaios do século dezenove e no início do século vinte: com
exatos zero caracteres. Mas gostaria de ouvir a opinião das meninas sobre esse
ponto.
Ainda sobre as mulheres, Nabuco
dá grande importância ao curto reinado da Princesa Isabel, e nos apresenta uma
tese bastante interessante (p. 248-249): a de que os três reinados no Brasil
são avanços da democracia e da liberdade. No de Pedro I, a independência; no de
Pedro II, a unidade nacional; no de Isabel, a abolição da escravatura. Eu ainda
colocaria o zerésimo reinado: D. João VI, como aquele da fundação das bases
institucionais para o avanço do Brasil. Penso que 1808 foi, possivelmente, mais
importante do que 1821, mas isso já é outra discussão.
A admiração dos reinados por
parte de Joaquim Nabuco acontece porque ele não entende a nobreza e a realeza
apenas como entidades de privilégio. Ele chega, em alguns pontos, a discutir a
sua defesa da monarquia com argumentos complexos e bem embasados, mas o ponto
central da discussão é que ele percebe a forma de governo como algo de certa
maneira distanciado das noções de democracia e de opressão. Isso faz bastante
sentido. Ainda hoje, existem monarquias com estado de bem-estar social
desenvolvido e regimes presidencialistas com altos índices de desigualdade.
Acho que não é possível desenvolver uma relação biunívoca entre a forma de governo
e as condições da população, no que diz respeito às liberdades e aos direitos
de que gozam. É como diz o próprio autor, na página 205: “A grande questão para a democracia brasileira, não é a monarchia, é a
escravidão.”.
Esta, no Brasil, funcionava por
dois eixos básicos: a opressão pela cor e a opressão pelo trabalho. Isso
ocorria de maneira unificada. Nos dias de hoje, essas coisas ocorrem de maneira
dissociada uma da outra: existem os pretos, e existe o trabalho escravo, que
está associado muitas vezes aos imigrantes e a uma certa xenofobia. As formas de oprimir se multiplicaram.
A escravidão tinha a vantagem (do
ponto de vista da organização das lutas) de concentrar boa parte da opressão da
vida brasileira antes de 1888. Na página 246, Nabuco explica um pouco como
funcionou o movimento abolicionista: “O
movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caracter
humanitario e social antes que religioso (...) Era um partido composto de
elementos heterogeneos, capazes de destruir um estado social levantado sobre o
privilegio e a injustiça, mas não de projectar sobre outras bases o futuro
edificio. (...) A liberdade por si só é fecunda, e sobre os destroços da
escravidão refar-se-ha com o tempo uma sociedade mais unida, de idéas mais
largas. (...) A verdade porém é, que a corrente abolicionista parou no dia
mesmo da abolição e no dia seguinte refluia.”
A quem se pensava como
progressista, aquela parecia a única luta a ser travada, ou ao menos a mais
importante delas. Sobre esta luta, mais uma vez Joaquim: “Mas a lucta pela justiça é isso mesmo, é o sacrificio de gerações
inteiras pelo direito ás vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um
opprimido, talvez um estranho.”
É curioso como Joaquim percebe o
negro escravizado como um ser humano, o que, apesar de óbvio, não parece ser a
tônica dos séculos dezoito e dezenove. Na verdade, como já vimos com Celso
Furtado, esse pensamento permanece até o século vinte, embora de maneira cada
vez mais sutil e sub-reptícia. É claro que Nabuco estava longe de fazer o
elogio da mestiçagem que Gilberto Freyre faria nos anos 1930, mas já é possível
perceber nele essa mistura de erudição, aristocracia e sensibilidade, de
maneira que ao lermos o trecho da página 113-114, poderíamos perfeitamente
pensar estar lendo Gilberto e não Joaquim: “Ha,
entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, patrio; ha
sentimento, tradição, culto de familia, religião, no prato domestico, na fructa
ou no vinho do paiz. A nós, do norte do Brasil, creados em engenho de canna, o
aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a
atmosphera da infancia.”
É esta sensibilidade que faz com
que Nabuco se aproxime de André Rebouças, o engenheiro negro. Penso que a
sensibilidade carrega consigo uma dose de utopia, que é a verdadeira força motriz
de quem pretende mudar alguma coisa no mundo, seja pela via parlamentar, pela
revolucionária, ou até mesmo pela artístico-estética. Nesse tema, temos Nabuco
falando sobre Rebouças: “(...) este
itinerario, que elle traçára para a fuga de escravos de S. Paulo para o Norte,
pura phantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade,
de toques da sua generosa sensibilidade, quase impessoal.” Este itinerário (que é a imagem que está no topo do texto) aponta um caminho para o Ceará Livre. Ele é mesmo bonito
e se situa na fronteira exata e tênue entre o sonho e a possibilidade.
O estado do Ceará, no século
dezenove, aparece como uma força progressista. É lá que está o município de
Redenção, que primeiro aboliu a escravatura em 1883. Hoje, este pequeno município
é sede da Universidade da Integração Luso-Afro Brasileira (UNILAB). Já em 1884,
o movimento abolicionista se expande de tal maneira que é promulgado o decreto
de libertação dos escravos de todo o estado do Ceará em 25 de março de 1884, quatro
anos antes da Lei Áurea. Ainda sobre esse estado, o jovem escritor cearense
Adolfo Caminha (morto aos 29 anos de tuberculose) publicou em 1895 o seu
romance “O bom-crioulo”, que é considerado o primeiro romance homossexual da
literatura e trata de amor e sexo entre marinheiros dentro de um navio de
guerra. Tenho a impressão de que acontece uma confluência de forças no Ceará
neste final do século dezenove que dota o estado de uma potência progressista
que não sei se voltará a se repetir ao longo do século vinte. Essa é uma parte
da história brasileira que conheço pouco, e tenho interesse em conhecer mais.
Mas voltando ao Nabuco e às
utopias, acabamos por ver nele algo de universal (ou quase) na história dos
políticos progressistas, que é a sensação de estar do lado certo da História,
independente do seu julgamento no presente. É a velha máxima do “A história me
absolverá”, dita por Fidel Castro, mas com a erudição e a poesia que são
garantidas pela personalidade de Nabuco e pelo apuro estético do final do
século retrasado. Diz Nabuco, na página 291: “O juizo da multidão que hoje nos eleva ou nos deprime, esse representa
apenas a poeira da estrada.”
Por fim, se há esta
universalidade associada à utopia, há quatro coisas ditas pelo autor que, longe
de se pretenderem universais, são incrivelmente contemporâneas, fixadas mesmos
no tempo de agora.
A primeira é o uso do vocábulo ‘lufa-lufa’ (p. 194). Certamente, outras
pessoas também acharam que este termo era um nome próprio que só serviria como
denominação de uma das casas do Harry Potter. Mas o vocábulo existe em
português e, segundo minhas consultas, o significado do termo, um substantivo
feminino, é: ‘agitação e pressa na
maneira de proceder; afã, azáfama, corre-corre’. Interessante, não?
A segunda é uma frase da página
250, que poderia perfeitamente ter sido escrita no Twitter em 2016: “Gratidão infinita pelo 13 de maio.” Pois
é, Joaquim assim o disse, desse jeito.
A terceira é quando ele se refere
a um amigo que praticamente não publica livros, mas influencia os tomadores de
decisão. Na página 298: “O horror da
scena, hoje do mercado, não póde ser um signal de inferioridade intelectual.”
Talvez nos dias de hoje, o horror de que ele fala deveria também ser estendido à
Academia. Em uma época tão diversa e múltipla, apesar da lógica ‘publish or
perish’ que o mundo acadêmico insiste em querer fazer valer, sabemos que o
conhecimento circula de várias maneiras: formais, informais, em rede, etc... É
bastante alentador notar que Joaquim já percebia que o conhecimento que não
estava na cena ou no mercado, isto é, o conhecimento não sistematizado, também
tinha o seu valor. Em 2016, há ainda muita gente que não é capaz de pensar as
coisas dessa maneira.
A quarta e última coisa é uma
frase, da página 249, que cai como uma luva nos dias de hoje. Acredito que todo
mundo é capaz de entender o porquê: “De
certo o exilio do imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a
magestade que hoje a reveste.” Atualíssima, não?
Talvez eu devesse terminar este
texto com essa citação ao exílio do imperador, mas há ainda uma última coisa a
dizer. Sobre a estrutura do livro, como obra estética, percebo que ele é
cercado por uma coisa etérea, religiosa, que o atravessa de cabo a rabo. E que
o livro, apesar de começar interessante, falando sobre as lições políticas
aprendidas com Bhageot, de repente vai ficando meio lento, quase chato e
repetitivo. Depois, vão entrando os elementos mais políticos e mais quentes do
livro. Nesse momento mais quente, é como se essa parte etérea quase não
estivesse lá, mas ela está. Então, ela vai novamente dominando o livro, que se
encerra sob esses auspícios divinos, mas com esse fundo também político; eles ficam
como que mesclados, ao final, mas acenando sempre para o etéreo.
Toda essa explicação, na verdade,
é para dizer que a estrutura do livro me lembrou muito a de uma música de pouco
mais de sete minutos, que coloco ao final do texto, de uma banca sueca chamada
Garmarna. O nome da música é ‘Unde Quocomque’, e, assim como ‘Minha formação’,
também apresenta uma espécie de oscilação pendular entre o etéreo e o político,
a erudição e a luta, e apresenta, ao final, um panorama onde essas esferas da
vida, aparentemente díspares, conseguem conviver de maneira harmônica e sem
muitos conflitos. Trata-se, ao fim e ao cabo, de duas obras que procuram a
beleza, onde quer que ele esteja.
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