terça-feira, 5 de julho de 2016

Utopias e contemporaneidades



Estou agora com essa mania de comprar as primeiras edições dos livros que decido ler. Isso me levou à edição impressa, de 1900, do livro “Minha formação”, de Joaquim Nabuco. Parece uma boa ideia, mas a capa não era original (o livro foi reencadernado), e as páginas de vez em quando descolavam do livro. Mas acho que vale a pena entrar em contato com a escrita original, especialmente quando se paga módicos 50 reais na Estante Virtual para um livro impresso no apagar das luzes do século dezenove.

A impressão que tive, nas primeiras páginas, era a de que este seria um livro bem chato. O cerne do livro, que é o de mostrar como Joaquim Nabuco tomou partido e, em certa medida, liderança no movimento abolicionista, só aparece do meio para final. Talvez o livro pudesse ser mais curto, mais direto ao ponto. Mas, a despeito do que procuram aqueles que geralmente o leem, este livro não se chama “Como e porquê me tornei um abolicionista”, mas, justamente “Minha formação”. É a história de alguém que conta como foi a sua formação (dãããã) intelectual, estética, política, humana e espiritual.

A discussão sobre a escravidão coloca Joaquim Nabuco na vanguarda não apenas da ação política de seu tempo, mas também da apreciação histórica de como este fenômeno, o da escravidão, seria interpretado retrospectivamente. A célere frase de Joaquim Nabuco, e talvez a mais famosa de seu livro, ainda é plena de sentido em 2016: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil.” (p. 216)

Entendo que essa é uma questão que deve ainda ser muito discutida, mas justamente por talvez ser esse o aspecto mais óbvio e de maior apelo na obra do autor, optarei por colocar o meu olhar naquilo que aparece de maneira mais marginal ao longo do texto.

Em primeiro lugar, e justamente por falar em olhar, vamos começar pelo ponto de vista do autor. É incômodo perceber uma certa arrogância no discurso de Nabuco. Parece que estamos a ver a história de alguém pouco humilde, que tudo viu, e tudo soube, e tudo fez. Mas Joaquim consegue transformar essa mesma arrogância em humildade (ou quase), quando demonstra total consciência disso. Destaco duas frases do autor: “O que me impediu de ser republicano na mocidade, foi muito provavelmente o ter sido sensível á impressão aristocratica da vida.” (p. 115) e “De certo, foi a mais nobre, a mais augusta das causas; mas o facto é que eu era alli o representante della, que em grande parte a dedicação, o sacrificio era por mim, como era meu o triumpho, minha a carreira, meu o futuro politico...” Nelas, o que se vê, para usar uma expressão contemporânea, é que Joaquim conhece precisamente o seu lugar de fala. Ele sabe que, naquele momento, é dele a voz de muitos que não conseguem se fazer ouvir e que, mesmo nessa condição, devido aos seus privilégios, ele é quem colherá os louros de qualquer sucesso.

Esse lugar de fala é importante não apenas para o objeto da ação política, mas também para a forma. Joaquim, que começa a vida com uma postura mais revolucionária, opta, ao longo de sua trajetória, por atuar de maneira mais institucional. É com uma certa tenacidade (p. 156-157) que a luta de Nabuco se constrói no parlamento e nas altas esferas (até ao Papa ele vai em prol da causa abolicionista), não nas ruas. Penso que é importante que haja esses dois espaços, que devem ser vistos como complementares. Uma coisa é a discussão acadêmica, a construção conceitual das ideias, outra coisa são as ruas, a forma como as pessoas se organizam para lutar por seus ideiais, etc. É claro que essas coisas se misturam, ainda mais na contemporaneidade onde tudo se mistura de forma tão intrínseca que quase não se consegue pensá-las isoladamente, mas é preciso garantir que cada um possa lutar pelo que acredita à sua maneira.

Ainda quanto às lutas, é interessante notar como Nabuco apresenta uma certa independência de pensamento. É fácil pensar que quem é contra a escravidão (um sistema que gera privilégios devido às características de cor/linhagem) seria também contra a monarquia (um sistema que gera privilégios devido às características de cor/linhagem). Mas ele não só não abraça a luta pela república, como defende de maneira enfática a sua opção pela monarquia. E também é católico. Essas opções parecem conservadoras, e talvez sejam, mas Nabuco parece operar numa certa dicotomia que se vale dessas estruturas e posições conservadoras para tomar o partido das causas liberais. Dessa maneira, segundo seu ponto de vista, é da monarquia que advém mais democracia, é da Igreja Católica que advém a liberdade para o corpo negro e é de uma vida aristocrática que advém um ideal progressista de liberdade.

Nesse sentido, é curioso perceber que Joaquim Nabuco é dos primeiros autores que parece prestar alguma atenção ao fato de que, além de negros, há também mulheres no Brasil. Em algum momento (não marquei a página), quando fala de Nova York, Joaquim coloca: “O menino americano, e quando se diz menino nos Estados Unidos entende-se a menina também (...)”. Já nas páginas 110-111, quando fala de sua opção monárquica, Joaquim afirma: “A monarchia moderna faria bem para sustentar-se em promulgar a lei salica em sentido contrario, isto é, em neutralisar ainda mais o poder neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer politica experimental, que não se basearia sómente no esplendido e pacifico jubileu da rainha Victoria e na calma relativa em tempos crueis para a Hespanha da regencia de D. Maria Christina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a primeira figura é uma mulher.” É claro que essa postura do autor pode ter mais a ver com um certo marianismo, que entende a mulher como um grande colo sobre o qual os homens podem se aconchegar (ainda mais conhecendo as suas opções religiosas) do que com uma verdadeira opção pelo empoderamento feminino. Esse marianismo (não confundir com marinismo; Maria é a mãe dos católicos e, Marina, a dos evangélicos) também reverbera na figura da própria Princesa Isabel, cuja imagem também foi construída a partir de uma aura de bondade, misericórdia e redenção. Entretanto, mesmo apesar dessa santificação da mulher e, especialmente por causa da passagem sobre o menino americano “entende-se a menina também”, creio ser possível perceber algo como um proto-feminismo no discurso de Joaquim, especialmente se considerarmos a forma como as mulheres eram descritas nos ensaios do século dezenove e no início do século vinte: com exatos zero caracteres. Mas gostaria de ouvir a opinião das meninas sobre esse ponto.

Ainda sobre as mulheres, Nabuco dá grande importância ao curto reinado da Princesa Isabel, e nos apresenta uma tese bastante interessante (p. 248-249): a de que os três reinados no Brasil são avanços da democracia e da liberdade. No de Pedro I, a independência; no de Pedro II, a unidade nacional; no de Isabel, a abolição da escravatura. Eu ainda colocaria o zerésimo reinado: D. João VI, como aquele da fundação das bases institucionais para o avanço do Brasil. Penso que 1808 foi, possivelmente, mais importante do que 1821, mas isso já é outra discussão.

A admiração dos reinados por parte de Joaquim Nabuco acontece porque ele não entende a nobreza e a realeza apenas como entidades de privilégio. Ele chega, em alguns pontos, a discutir a sua defesa da monarquia com argumentos complexos e bem embasados, mas o ponto central da discussão é que ele percebe a forma de governo como algo de certa maneira distanciado das noções de democracia e de opressão. Isso faz bastante sentido. Ainda hoje, existem monarquias com estado de bem-estar social desenvolvido e regimes presidencialistas com altos índices de desigualdade. Acho que não é possível desenvolver uma relação biunívoca entre a forma de governo e as condições da população, no que diz respeito às liberdades e aos direitos de que gozam. É como diz o próprio autor, na página 205: “A grande questão para a democracia brasileira, não é a monarchia, é a escravidão.”.

Esta, no Brasil, funcionava por dois eixos básicos: a opressão pela cor e a opressão pelo trabalho. Isso ocorria de maneira unificada. Nos dias de hoje, essas coisas ocorrem de maneira dissociada uma da outra: existem os pretos, e existe o trabalho escravo, que está associado muitas vezes aos imigrantes e a uma certa xenofobia.  As formas de oprimir se multiplicaram.

A escravidão tinha a vantagem (do ponto de vista da organização das lutas) de concentrar boa parte da opressão da vida brasileira antes de 1888. Na página 246, Nabuco explica um pouco como funcionou o movimento abolicionista: “O movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caracter humanitario e social antes que religioso (...) Era um partido composto de elementos heterogeneos, capazes de destruir um estado social levantado sobre o privilegio e a injustiça, mas não de projectar sobre outras bases o futuro edificio. (...) A liberdade por si só é fecunda, e sobre os destroços da escravidão refar-se-ha com o tempo uma sociedade mais unida, de idéas mais largas. (...) A verdade porém é, que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no dia seguinte refluia.

A quem se pensava como progressista, aquela parecia a única luta a ser travada, ou ao menos a mais importante delas. Sobre esta luta, mais uma vez Joaquim: “Mas a lucta pela justiça é isso mesmo, é o sacrificio de gerações inteiras pelo direito ás vezes de um só, para resgatar a injustiça feita a um opprimido, talvez um estranho.

É curioso como Joaquim percebe o negro escravizado como um ser humano, o que, apesar de óbvio, não parece ser a tônica dos séculos dezoito e dezenove. Na verdade, como já vimos com Celso Furtado, esse pensamento permanece até o século vinte, embora de maneira cada vez mais sutil e sub-reptícia. É claro que Nabuco estava longe de fazer o elogio da mestiçagem que Gilberto Freyre faria nos anos 1930, mas já é possível perceber nele essa mistura de erudição, aristocracia e sensibilidade, de maneira que ao lermos o trecho da página 113-114, poderíamos perfeitamente pensar estar lendo Gilberto e não Joaquim: “Ha, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, patrio; ha sentimento, tradição, culto de familia, religião, no prato domestico, na fructa ou no vinho do paiz. A nós, do norte do Brasil, creados em engenho de canna, o aroma que rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosphera da infancia.

É esta sensibilidade que faz com que Nabuco se aproxime de André Rebouças, o engenheiro negro. Penso que a sensibilidade carrega consigo uma dose de utopia, que é a verdadeira força motriz de quem pretende mudar alguma coisa no mundo, seja pela via parlamentar, pela revolucionária, ou até mesmo pela artístico-estética. Nesse tema, temos Nabuco falando sobre Rebouças: “(...) este itinerario, que elle traçára para a fuga de escravos de S. Paulo para o Norte, pura phantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade, de toques da sua generosa sensibilidade, quase impessoal.” Este itinerário (que é a imagem que está no topo do texto) aponta um caminho para o Ceará Livre. Ele é mesmo bonito e se situa na fronteira exata e tênue entre o sonho e a possibilidade.

O estado do Ceará, no século dezenove, aparece como uma força progressista. É lá que está o município de Redenção, que primeiro aboliu a escravatura em 1883. Hoje, este pequeno município é sede da Universidade da Integração Luso-Afro Brasileira (UNILAB). Já em 1884, o movimento abolicionista se expande de tal maneira que é promulgado o decreto de libertação dos escravos de todo o estado do Ceará em 25 de março de 1884, quatro anos antes da Lei Áurea. Ainda sobre esse estado, o jovem escritor cearense Adolfo Caminha (morto aos 29 anos de tuberculose) publicou em 1895 o seu romance “O bom-crioulo”, que é considerado o primeiro romance homossexual da literatura e trata de amor e sexo entre marinheiros dentro de um navio de guerra. Tenho a impressão de que acontece uma confluência de forças no Ceará neste final do século dezenove que dota o estado de uma potência progressista que não sei se voltará a se repetir ao longo do século vinte. Essa é uma parte da história brasileira que conheço pouco, e tenho interesse em conhecer mais.

Mas voltando ao Nabuco e às utopias, acabamos por ver nele algo de universal (ou quase) na história dos políticos progressistas, que é a sensação de estar do lado certo da História, independente do seu julgamento no presente. É a velha máxima do “A história me absolverá”, dita por Fidel Castro, mas com a erudição e a poesia que são garantidas pela personalidade de Nabuco e pelo apuro estético do final do século retrasado. Diz Nabuco, na página 291: “O juizo da multidão que hoje nos eleva ou nos deprime, esse representa apenas a poeira da estrada.

Por fim, se há esta universalidade associada à utopia, há quatro coisas ditas pelo autor que, longe de se pretenderem universais, são incrivelmente contemporâneas, fixadas mesmos no tempo de agora.

A primeira é o uso do vocábulo ‘lufa-lufa’ (p. 194). Certamente, outras pessoas também acharam que este termo era um nome próprio que só serviria como denominação de uma das casas do Harry Potter. Mas o vocábulo existe em português e, segundo minhas consultas, o significado do termo, um substantivo feminino, é: ‘agitação e pressa na maneira de proceder; afã, azáfama, corre-corre’. Interessante, não?

A segunda é uma frase da página 250, que poderia perfeitamente ter sido escrita no Twitter em 2016: “Gratidão infinita pelo 13 de maio.” Pois é, Joaquim assim o disse, desse jeito.

A terceira é quando ele se refere a um amigo que praticamente não publica livros, mas influencia os tomadores de decisão. Na página 298: “O horror da scena, hoje do mercado, não póde ser um signal de inferioridade intelectual.” Talvez nos dias de hoje, o horror de que ele fala deveria também ser estendido à Academia. Em uma época tão diversa e múltipla, apesar da lógica ‘publish or perish’ que o mundo acadêmico insiste em querer fazer valer, sabemos que o conhecimento circula de várias maneiras: formais, informais, em rede, etc... É bastante alentador notar que Joaquim já percebia que o conhecimento que não estava na cena ou no mercado, isto é, o conhecimento não sistematizado, também tinha o seu valor. Em 2016, há ainda muita gente que não é capaz de pensar as coisas dessa maneira.

A quarta e última coisa é uma frase, da página 249, que cai como uma luva nos dias de hoje. Acredito que todo mundo é capaz de entender o porquê: “De certo o exilio do imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura a magestade que hoje a reveste.” Atualíssima, não?

Talvez eu devesse terminar este texto com essa citação ao exílio do imperador, mas há ainda uma última coisa a dizer. Sobre a estrutura do livro, como obra estética, percebo que ele é cercado por uma coisa etérea, religiosa, que o atravessa de cabo a rabo. E que o livro, apesar de começar interessante, falando sobre as lições políticas aprendidas com Bhageot, de repente vai ficando meio lento, quase chato e repetitivo. Depois, vão entrando os elementos mais políticos e mais quentes do livro. Nesse momento mais quente, é como se essa parte etérea quase não estivesse lá, mas ela está. Então, ela vai novamente dominando o livro, que se encerra sob esses auspícios divinos, mas com esse fundo também político; eles ficam como que mesclados, ao final, mas acenando sempre para o etéreo.

Toda essa explicação, na verdade, é para dizer que a estrutura do livro me lembrou muito a de uma música de pouco mais de sete minutos, que coloco ao final do texto, de uma banca sueca chamada Garmarna. O nome da música é ‘Unde Quocomque’, e, assim como ‘Minha formação’, também apresenta uma espécie de oscilação pendular entre o etéreo e o político, a erudição e a luta, e apresenta, ao final, um panorama onde essas esferas da vida, aparentemente díspares, conseguem conviver de maneira harmônica e sem muitos conflitos. Trata-se, ao fim e ao cabo, de duas obras que procuram a beleza, onde quer que ele esteja.


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