segunda-feira, 11 de julho de 2016

Quem não tem sangue negro nas veias, tem nas mãos.

Durante boa parte do tempo que gastei lendo livro, fiquei pendular, ora odiando, ora gostando de Joaquim. Ele escreve muito bem, e isso faz diferença. Saí do pêndulo quando entendi que é um livro extremamente pessoal, que não deixa dúvida quanto a sua intenção desde o título. Acho que foi o primeiro livro que li escrito por um político de verdade, embora a carreira política de JN tenha ocupado uma pequena parte de sua vida, apenas.

Este ponto já gerou algum mal-estar, pois ele se coloca como um político ocasional, ou monocausal, que entrou na política apenas pela abolição. Como texto ou subtexto em várias partes do livro vejo uma desvalorização da política real, com um viés moralista e algo que talvez hoje chamaríamos de apartidarismo. Deu também vontade de vomitar a pagação de pau dele para a Europa. Depois tento compreender o contexto e tudo, mas também compreendo o contexto em que eu leio, não só aquele em que JN vivia. O livro é retrato de um tempo e de uma cultura, a partir do ponto de vista de um aristocrata do Império. Se ele começa falando bem do alto, aos poucos vai se colocando mais humano, com falhas e ressentimentos, mas não o ressentimento do aristocrata ferido pelo progresso do tempo, mas de alguém que percebe que não acertou sempre na vida. Ele poderia ter feito do livro um grande lamento e crítica à República, do modo como ela chegou e se estabeleceu no Brasil, mas prefere não morar na queixa e segue em frente.

Em vários momentos ele se refere ao inconsciente. O livro é de 1900, mesmo ano da formulação clássica freudiana que veio com “A Interpretação dos Sonhos”. Esse dado reforça a tese de que o conceito de inconsciente não foi inventado por Freud, mas sim capturado e depurado por ele a partir do Zeitgeist. Na literatura há outros exemplos disso, com Machado e Eça.

No começo, citando Bagehot, ele faz uma espécie de elogio ao parlamentarismo (monarquista). Fala que o poder que faz as leis deve também se ocupar de executá-las. No Brasil hoje isso não ocorre, e é frequente a falta de acordo entre os interesses legislativos e executivos. O legislativo da oposição quer aumentar os gastos que o governo quer cortar ou conter. Acho que essa frase resume bem certos momentos da política. Mesmo com a exigência de que, ao apresentar um projeto que implique gasto, o parlamentar tenha de indicar a origem do financiamento, o que se vê são projetos de leis que não podem ser cumpridas, regras sem previsão de sanção ou punição para quem as descumprir, ou simplesmente leis que não “pegam”, ou seja, não são cumpridas de todo, e não se espera que sejam cumpridas.

Ainda sobre a questão da decisão versus responsabilidade na execução, pensei no Judiciário. O Judiciário é o poder que manda fazer tudo, mas não se responsabiliza pelas consequências de suas ordens. Isso por um lado faz sentido, pois garante alguma isenção. Por outro leva a um poder desconectado da realidade. Será que os juízes lançariam mão tão frequentemente de ordens de prisão, penas de reclusão etc., se fossem eles a arcar com os custos das prisões, por exemplo? A mobilização do Judiciário para resolver — ou ao menos discutir e trabalhar — a questão carcerária no país é insuficiente. Mesmo a lei facultando a aplicação de penas alternativas à reclusão, os juízes, de forma geral, continuam privilegiando mandar os condenados (ou às vezes nem condenados) à prisão, que não é eficaz nem eficiente.  O que tem determinado a decisão por esta ou aquela pena são, nesta ordem, a cor da pele e a classe social do acusado. Um ponto de perpetuação da organicidade da escravidão no Brasil.

Assistindo a debates e sessões na TV Câmara, embora naqueles algumas questões importantes sejam discutidas, nestas o que entra de fato em deliberação são geralmente projetos fúteis e de baixo impacto na resolução dos grandes problemas nacionais. O processo democrático é muito pouco denso e muito lento.

JN percebe que no Reino Unido o parlamentarismo é “orgânico”, isto é, é uma instituição nascida e crescida de maneira natural e espontânea do seio da sociedade. Na verdade, acho que não é bem assim, mas não tenho muitos elementos além do meu achismo para contra argumentar. Mas no Brasil, orgânico mesmo é a escravidão, contrariamente ao que JN coloca mais adiante no livro. A organicidade acaba sendo feita de cima para baixo, tanto em sentido progressista — como na não aceitação popular do desmonte do SUS — como em sentido reacionário, como no caso do medo do comunismo e da meritocracia, e da própria escravidão. Isso mostra que é possível gerar organicidade. Ou ainda desfazê-la como o que acho que deve ser feito com o pensamento senhor/escravo.

Ele critica a criação de instituições sem institucionalidade no Brasil, como cópias do que há em outros países. Concordo com isso, mas não sei como dar solução. Os modelos de fortalecimento de poder local são bem interessantes em teoria, mas não me parece haver no cidadão brasileiro da grande cidade, de forma geral, disponibilidade para participar de processos decisórios, por exemplo em audiências públicas ou conselhos locais de administração (de saúde e educação, por exemplo). Esses dispositivos, cuja criação objetiva gerar formas de capilarização das tomadas de decisão, não raramente são cooptados por xerifes locais que nem sempre agem para o bem comum, ou representam os anseios da comunidade.

O parlamentarismo gera também instabilidade, em que pese a imagem estável de um chefe de Estado estável e inócuo, pois não se sabe nunca até quando um determinado governo vai continuar governo. A periodicidade das eleições presidencialistas cria o problema de se paralisar tudo a cada 2 ou quatro anos por causa das campanhas de eleição, então não há alternativa perfeita one size fits all. A própria Inglaterra já passou leis para dar mais previsibilidade às eleições. Nos últimos 3 anos, a Austrália teve uns 4 primeiros-ministros, mas só uma eleição popular.

De fato, em havendo grandes diferenças entre legislativo e executivo, por conseguinte haveria um bloqueio das ações do governo enquanto durar o impasse, que pode levar anos para se resolver. O parlamentarismo não evita isso por completo; é cada vez mais comum vermos governos “trancados” por incapacidade do partido com mais cadeiras de fazer maioria no parlamento. Bélgica, Espanha e Portugal são exemplos recentes em que isto aconteceu.

Ainda no tocante ao seu preferido objeto de pagação de pau, a Inglaterra, ele menciona que Londres é a metrópole do mundo e é uma cidade inglesa, não uma cidade cosmopolita. À época a circulação de pessoas era mais difícil, mas o capital já circulava muito bem, obrigado. Hoje Londres não é mais uma cidade inglesa, sinal de que em 150 anos a circulação de pessoas cresceu ao menos um pouco.


A maior contribuição do livro, mais do que um olhar, ainda que superficial, interno do processo legislativo que conduziu à abolição, é reforçar que a escravidão por muito tempo permanecerá no modo brasileiro de pensar e agir. Penso que devemos dar a maior profundidade possível a este assunto nas discussões e leituras do grupo e vou insistir nisso. É a escravidão que está por trás do cisma dos brasileiros em ricos e pobres. Os pobres que querem ser senhores. O oprimido que quer ser opressor. O policial que bate, atira, confunde pipoca com droga, mas não confunde preto com branco. Qualquer coisa que se tente chamar de “espírito nacional” traz consigo essa marca. 

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