Durante boa parte do tempo que gastei lendo livro, fiquei pendular, ora
odiando, ora gostando de Joaquim. Ele escreve muito bem, e isso faz diferença.
Saí do pêndulo quando entendi que é um livro extremamente pessoal, que não
deixa dúvida quanto a sua intenção desde o título. Acho que foi o primeiro
livro que li escrito por um político de verdade, embora a carreira política de
JN tenha ocupado uma pequena parte de sua vida, apenas.
Este ponto já gerou algum mal-estar, pois ele se coloca como um político
ocasional, ou monocausal, que entrou na política apenas pela abolição. Como texto ou subtexto
em várias partes do livro vejo uma desvalorização da política real, com um viés
moralista e algo que talvez hoje chamaríamos de apartidarismo. Deu também
vontade de vomitar a pagação de pau dele para a Europa. Depois tento
compreender o contexto e tudo, mas também compreendo o contexto em que eu leio,
não só aquele em que JN vivia. O livro é retrato de um tempo e de uma cultura,
a partir do ponto de vista de um aristocrata do Império. Se ele começa falando
bem do alto, aos poucos vai se colocando mais humano, com falhas e
ressentimentos, mas não o ressentimento do aristocrata ferido pelo progresso do
tempo, mas de alguém que percebe que não acertou sempre na vida. Ele poderia
ter feito do livro um grande lamento e crítica à República, do modo como ela
chegou e se estabeleceu no Brasil, mas prefere não morar na queixa e segue em
frente.
Em vários momentos ele se refere ao inconsciente. O livro é de 1900, mesmo
ano da formulação clássica freudiana que veio com “A Interpretação dos Sonhos”.
Esse dado reforça a tese de que o conceito de inconsciente não foi inventado
por Freud, mas sim capturado e depurado por ele a partir do Zeitgeist. Na literatura há outros exemplos disso, com Machado e Eça.
No começo, citando Bagehot, ele faz uma espécie de elogio ao
parlamentarismo (monarquista). Fala que o poder que faz as leis deve também se
ocupar de executá-las. No Brasil hoje isso não ocorre, e é frequente a falta de
acordo entre os interesses legislativos e executivos. O legislativo da oposição
quer aumentar os gastos que o governo quer cortar ou conter. Acho que essa
frase resume bem certos momentos da política. Mesmo com a exigência de que, ao
apresentar um projeto que implique gasto, o parlamentar tenha de indicar a
origem do financiamento, o que se vê são projetos de leis que não podem ser
cumpridas, regras sem previsão de sanção ou punição para quem as descumprir, ou
simplesmente leis que não “pegam”, ou seja, não são cumpridas de todo, e não se
espera que sejam cumpridas.
Ainda sobre a questão da decisão versus responsabilidade
na execução, pensei no Judiciário. O Judiciário é o poder que manda fazer tudo,
mas não se responsabiliza pelas consequências de suas ordens. Isso por um lado
faz sentido, pois garante alguma isenção. Por outro leva a um poder
desconectado da realidade. Será que os juízes lançariam mão tão frequentemente
de ordens de prisão, penas de reclusão etc., se fossem eles a arcar com os
custos das prisões, por exemplo? A mobilização do Judiciário para resolver — ou
ao menos discutir e trabalhar — a questão carcerária no país é insuficiente.
Mesmo a lei facultando a aplicação de penas alternativas à reclusão, os juízes,
de forma geral, continuam privilegiando mandar os condenados (ou às vezes nem
condenados) à prisão, que não é eficaz nem eficiente. O que tem
determinado a decisão por esta ou aquela pena são, nesta ordem, a cor da pele e
a classe social do acusado. Um ponto de perpetuação da organicidade da
escravidão no Brasil.
Assistindo a debates e sessões na TV Câmara, embora naqueles algumas
questões importantes sejam discutidas, nestas o que entra de fato em
deliberação são geralmente projetos fúteis e de baixo impacto na resolução dos
grandes problemas nacionais. O processo democrático é muito pouco denso e muito
lento.
JN percebe que no Reino Unido o parlamentarismo é “orgânico”, isto é, é
uma instituição nascida e crescida de maneira natural e espontânea do seio da
sociedade. Na verdade, acho que não é bem assim, mas não tenho muitos elementos
além do meu achismo para contra argumentar. Mas no Brasil, orgânico mesmo é a
escravidão, contrariamente ao que JN coloca mais adiante no livro. A
organicidade acaba sendo feita de cima para baixo, tanto em sentido
progressista — como na não aceitação popular do desmonte do SUS — como em
sentido reacionário, como no caso do medo do comunismo e da meritocracia, e da
própria escravidão. Isso mostra que é possível gerar organicidade.
Ou ainda desfazê-la como o que acho que deve ser feito com o pensamento
senhor/escravo.
Ele critica a criação de instituições sem institucionalidade no Brasil,
como cópias do que há em outros países. Concordo com isso, mas não sei como dar
solução. Os modelos de fortalecimento de poder local são bem interessantes em
teoria, mas não me parece haver no cidadão brasileiro da grande cidade, de
forma geral, disponibilidade para participar de processos decisórios, por
exemplo em audiências públicas ou conselhos locais de administração (de saúde e
educação, por exemplo). Esses dispositivos, cuja criação objetiva gerar formas
de capilarização das tomadas de decisão, não raramente são cooptados por
xerifes locais que nem sempre agem para o bem comum, ou representam os anseios
da comunidade.
O parlamentarismo gera também instabilidade, em que pese a imagem
estável de um chefe de Estado estável e inócuo, pois não se sabe nunca até
quando um determinado governo vai continuar governo. A periodicidade das
eleições presidencialistas cria o problema de se paralisar tudo a cada 2 ou
quatro anos por causa das campanhas de eleição, então não há alternativa
perfeita one size fits all. A própria Inglaterra já passou
leis para dar mais previsibilidade às eleições. Nos últimos 3 anos, a Austrália
teve uns 4 primeiros-ministros, mas só uma eleição popular.
De fato, em havendo grandes diferenças entre legislativo e executivo,
por conseguinte haveria um bloqueio das ações do governo enquanto durar o
impasse, que pode levar anos para se resolver. O parlamentarismo não evita isso
por completo; é cada vez mais comum vermos governos “trancados” por
incapacidade do partido com mais cadeiras de fazer maioria no parlamento.
Bélgica, Espanha e Portugal são exemplos recentes em que isto aconteceu.
Ainda no tocante ao seu preferido objeto de pagação de pau, a
Inglaterra, ele menciona que Londres é a metrópole do mundo e é uma cidade
inglesa, não uma cidade cosmopolita. À época a circulação de pessoas era mais
difícil, mas o capital já circulava muito bem, obrigado. Hoje Londres não é
mais uma cidade inglesa, sinal de que em 150 anos a circulação de pessoas
cresceu ao menos um pouco.
A maior contribuição do livro, mais do que um olhar, ainda que
superficial, interno do processo legislativo que conduziu à abolição, é
reforçar que a escravidão por muito tempo permanecerá no modo brasileiro de
pensar e agir. Penso que devemos dar a maior profundidade possível a este
assunto nas discussões e leituras do grupo e vou insistir nisso. É a escravidão
que está por trás do cisma dos brasileiros em ricos e pobres. Os pobres que
querem ser senhores. O oprimido que quer ser opressor. O policial que bate,
atira, confunde pipoca com droga, mas não confunde preto com branco. Qualquer coisa
que se tente chamar de “espírito nacional” traz consigo essa marca.
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