segunda-feira, 3 de julho de 2017

Da Destruição da Cidadania

De início torci o nariz para a forma um tanto debochada com que o autor se refere a determinadas práticas das presas, como as orações e louvores em voz alta. Depois essa resistência minha foi cedendo, para dar lugar a uma grande admiração. Dráuzio se coloca. Apesar de dizer no epílogo que é avesso a religiões e ideologias, mostra-se extremamente humano, confessando alguns erros e tropeços e, principalmente, colocando as próprias opiniões.

Logo no começo, quando fala da hierarquia e organização dos presídios, e depois quando descreve os “tipos”, salta aos olhos o machismo — não o do autor, que nem vi aparecer tanto, mas do próprio esquema de poder lá dentro. Mesmo num presídio feminino, o machismo se reproduz intensamente. De cara, com o comando masculino da facção que organiza a vida das presas. Talvez isso não seja apenas reprodução de machismo, mas machismo puro e simples. O impressionante de verdade é como as classificações das relações homossexuais seguem padrões machistas e opressores, que determinam as interações sociais dentro do presídio. Quanto mais comportamento macho tem a mulher, mais respeitada. Em paralelo, corre a homofobia no organograma do PCC, que não admite que seus integrantes tenham histórico de comportamento homossexual.

Coirmão do machismo, o autoritarismo é impressionante, como forma de manutenção da ordem. A passagem em que Varella compara o código penal do PCC com o do Estado organizado mostra como o autoritarismo é eficaz em manter a ordem em ambientes fechados, ao mesmo tempo em que a celeridade dos julgamentos e execuções admite erros como parte do processo.

Impossível não articular “Prisioneiras” com “Vigiar e Punir”, de Foucault. Essa articulação se impõe em uma passagem que diz “só um irmão virou cidadão”, ou algo parecido. Essa frase é dita por uma presa que fala que toda a sua família, de uma forma ou de outra, se envolveu com o crime. A frase é emblemática no sentido de colocar claramente que o preso deixa de ser cidadão. A punição deixa de ser relacionada ao ato, apesar de assim ser colocada nos códigos, e passa a ser biográfica (vide Foucault). A passagem pela prisão passa a ser definidora de uma vida ligada ao crime, à exclusão da cidadania. Do lado de fora, a vida é uma merda, tanto antes quanto depois de ser presa. Dentro pode haver alguma organização se as leis severas do comando forem respeitadas.

Além de machismo e autoritarismo, para completar a tríade na organização do comando, entra o capitalismo. Vários pontos-chave no organograma e processos de trabalho do PCC estão em absoluta consonância com o caminho do verdadeiro livre mercado. O controle dos processos pela força, a tendência ao monopólio, formação de carteis e destruição da concorrência. Dráuzio deixa claro que mesmo o que pode ser enxergado como uma contribuição benéfica da instalação do comando do PCC — como a proibição do crack nos presídios e da execução de presos — são na verdade decorrentes de decisões baseadas em estratégias e táticas visando à preservação e ampliação do negócio. Assim como a função nominal do presídio de proteção da sociedade e recuperação do cidadão encobrem vingança e destruição da cidadania, o lema livre concorrência e equilíbrio do mercado escondem vantagens injustas e busca incessante do lucro e do monopólio.

A facção organiza a vida dentro do presídio. O Estado é incapaz de fazê-lo, ou simplesmente não quer. O presídio é o resultado não de um projeto de reintegração das presas ou de proteção da sociedade, mas um dispositivo de vingança punitiva. Num dos últimos capítulos de Vigiar e Punir, Foucault fala sobre o fato de a prisão já ter nascido necessitando de reforma. Desde que nasceu a primeira prisão se fala em reformular o modelo. A partir daí, muito se fala na ineficácia dos presídios e cadeias em geral, mas temos de pensar, como propõe Michel, o Foucault, onde está a verdadeira eficácia das prisões.

A prisão é eficaz em destruir pobres e negros.
A prisão é eficaz em produzir mais criminosos e mais graves.
A prisão perpetua a pobreza e as privações por que passam as famílias pobres.
A prisão encarna o desejo de vingança do brasileiro, criando mais destruição do que a simples morte, pois ela se dissemina pelas gerações.
A prisão, entendida como prolongamento do judiciário, funciona como mais um fator de exclusão do pobre e proteção do rico, pois os códigos — penal, de processo, criminal, implícitos ou explícitos — contêm, também desde o nascimento, uma pletora de detalhes e brechas sujeitos a interpretações diversas a serem interpretadas por juízes de maneiras diferentes a partir de quanto se pode pagar por um bom advogado, da cor da pele e da origem social do acusado ou condenado (papeis que podem já vir fundidos em muitos casos). Ainda em Vigiar e Punir, Foucault evidencia também a eficácia da prisão em valorizar a pequena delinquência, encobrindo a grande delinquência, que pode ser representada pela própria estrutura excludente da sociedade, das leis injustas e de seu cumprimento e interpretações ainda mais injustos, do controle do poder pelo capital. A realidade mostra isso quando um helicóptero com meia tonelada de maconha fica sem dono, e um zé-povinho pego uma qualquer quantidade pode ser considerado traficante e preso, com as consequências biográficas que a experiência no cárcere implica.

A obra gebiana à qual a comparação com Prisioneiras aparece mais diretamente é “O Dono do Morro”, de Misha Glenny. A favela, assim como o presídio, está sujeita aos desmandos de uma organização de poder “paralelo”. A diferença é que no ambiente fechado do presídio o controle é forte o suficiente para impedir a entrada de crack. Pode ser que em algumas favelas haja proibição ao crack eficaz, mas não sei.

Comparando os autores, o relato jornalístico e cuidadosamente distante de Glenny ao descrever a história de Nem, mesmo com seus muitos adjetivos, contrasta com a maneira pessoal com que Dráuzio relata sua própria experiência como médico no meio das presas. Varella não só descreve as situações, mas conta suas mancadas, erros de juízo e, acima de tudo, opiniões. Diferentemente de Glenny, Dráuzio critica frontalmente a política de guerra às drogas, com argumentos fortes e colocados de maneira muito compreensível.

No epílogo de Prisioneiras, o segmento que poderíamos chamar de mais autoral do livro, Dráuzio coloca a própria história, mesclando-a com uma síntese absolutamente clara do que se sabe sobre os fatores de risco ligados ao aumento da criminalidade e da futilidade das medidas tomadas pelo Estado até o momento para lidar com o problema, não só da violência, mas também do aumento da população encarcerada. O epílogo é a pérola do livro. Além de problematizar as situações sociais, econômicas e culturais, no plano macro, Dráuzio se coloca no particular de sua condição de médico, e mesmo na singularidade de sua vivência com cada presa, ouvindo as histórias e entendendo, ou tentando entender como estabelecer algum contato de qualidade com aquelas pessoas para exercer algum poder de cura, melhora ou alívio de sofrimento. 


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