De início torci o nariz para a forma um
tanto debochada com que o autor se refere a determinadas práticas das presas,
como as orações e louvores em voz alta. Depois essa resistência minha foi
cedendo, para dar lugar a uma grande admiração. Dráuzio se coloca. Apesar de
dizer no epílogo que é avesso a religiões e ideologias, mostra-se extremamente
humano, confessando alguns erros e tropeços e, principalmente, colocando as
próprias opiniões.
Logo no começo, quando fala da
hierarquia e organização dos presídios, e depois quando descreve os “tipos”,
salta aos olhos o machismo — não o do autor, que nem vi aparecer tanto, mas do
próprio esquema de poder lá dentro. Mesmo num presídio feminino, o machismo se
reproduz intensamente. De cara, com o comando masculino da facção que organiza
a vida das presas. Talvez isso não seja apenas reprodução de machismo, mas
machismo puro e simples. O
impressionante de verdade é como as classificações das relações homossexuais
seguem padrões machistas e opressores, que determinam as interações sociais
dentro do presídio. Quanto mais comportamento macho tem a mulher, mais
respeitada. Em paralelo, corre a homofobia no organograma do PCC, que não
admite que seus integrantes tenham histórico de comportamento homossexual.
Coirmão do machismo, o autoritarismo é
impressionante, como forma de manutenção da ordem. A passagem em que Varella
compara o código penal do PCC com o do Estado organizado mostra como o
autoritarismo é eficaz em manter a ordem em ambientes fechados, ao mesmo tempo
em que a celeridade dos julgamentos e execuções admite erros como parte do
processo.
Impossível não articular “Prisioneiras”
com “Vigiar e Punir”, de Foucault. Essa articulação se impõe em uma passagem que
diz “só um irmão virou cidadão”, ou algo parecido. Essa frase é dita por uma
presa que fala que toda a sua família, de uma forma ou de outra, se envolveu
com o crime. A frase é emblemática no sentido de colocar claramente que o preso deixa
de ser cidadão. A punição deixa de ser relacionada ao ato, apesar de assim
ser colocada nos códigos, e passa a ser biográfica (vide
Foucault). A passagem pela prisão passa a ser definidora de uma vida ligada ao
crime, à exclusão da cidadania. Do lado de fora, a vida é uma merda, tanto
antes quanto depois de ser presa. Dentro pode haver alguma organização se as
leis severas do comando forem respeitadas.
Além de machismo e autoritarismo, para
completar a tríade na organização do comando, entra o capitalismo. Vários
pontos-chave no organograma e processos de trabalho do PCC estão em absoluta
consonância com o caminho do verdadeiro livre mercado. O controle dos processos
pela força, a tendência ao monopólio, formação de carteis e destruição da
concorrência. Dráuzio deixa claro que mesmo o que pode ser enxergado como uma
contribuição benéfica da instalação do comando do PCC — como a proibição do
crack nos presídios e da execução de presos — são na verdade decorrentes de
decisões baseadas em estratégias e táticas visando à preservação e ampliação do
negócio. Assim como a função nominal do presídio de proteção da sociedade e
recuperação do cidadão encobrem vingança e destruição da cidadania, o lema livre
concorrência e equilíbrio do mercado escondem vantagens injustas e busca
incessante do lucro e do monopólio.
A facção organiza a vida dentro do
presídio. O Estado é incapaz de fazê-lo, ou simplesmente não quer. O presídio é
o resultado não de um projeto de reintegração das presas ou de proteção da
sociedade, mas um dispositivo de vingança punitiva. Num dos
últimos capítulos de Vigiar e Punir, Foucault fala sobre o fato de a prisão já
ter nascido necessitando de reforma. Desde que nasceu a primeira prisão se fala
em reformular o modelo. A partir daí, muito se fala na ineficácia dos presídios
e cadeias em geral, mas temos de pensar, como propõe Michel, o Foucault, onde
está a verdadeira eficácia das prisões.
A prisão é eficaz em destruir pobres e
negros.
A prisão é eficaz em produzir mais
criminosos e mais graves.
A prisão perpetua a pobreza e as
privações por que passam as famílias pobres.
A prisão encarna o desejo de vingança
do brasileiro, criando mais destruição do que a simples morte, pois ela se
dissemina pelas gerações.
A prisão, entendida como prolongamento
do judiciário, funciona como mais um fator de exclusão do pobre e proteção do
rico, pois os códigos — penal, de processo, criminal, implícitos ou explícitos
— contêm, também desde o nascimento, uma pletora de detalhes e brechas sujeitos
a interpretações diversas a serem interpretadas por juízes de maneiras
diferentes a partir de quanto se pode pagar por um bom advogado, da cor da pele
e da origem social do acusado ou condenado (papeis que podem já vir fundidos em
muitos casos). Ainda em Vigiar e Punir, Foucault evidencia também a eficácia da
prisão em valorizar a pequena delinquência, encobrindo a grande delinquência,
que pode ser representada pela própria estrutura excludente da sociedade, das
leis injustas e de seu cumprimento e interpretações ainda mais injustos, do
controle do poder pelo capital. A realidade mostra isso quando um helicóptero
com meia tonelada de maconha fica sem dono, e um zé-povinho pego uma qualquer quantidade
pode ser considerado traficante e preso, com as consequências biográficas que a
experiência no cárcere implica.
A obra gebiana à qual a comparação com
Prisioneiras aparece mais diretamente é “O Dono do Morro”, de Misha Glenny. A
favela, assim como o presídio, está sujeita aos desmandos de uma organização de
poder “paralelo”. A diferença é que no ambiente fechado do presídio o controle
é forte o suficiente para impedir a entrada de crack. Pode ser que em algumas
favelas haja proibição ao crack eficaz, mas não sei.
Comparando os autores, o relato jornalístico
e cuidadosamente distante de Glenny ao descrever a história de Nem, mesmo com
seus muitos adjetivos, contrasta com a maneira pessoal com que Dráuzio relata
sua própria experiência como médico no meio das presas. Varella não só descreve
as situações, mas conta suas mancadas, erros de juízo e, acima de tudo,
opiniões. Diferentemente de Glenny, Dráuzio critica frontalmente a política de
guerra às drogas, com argumentos fortes e colocados de maneira muito compreensível.
No epílogo de Prisioneiras, o segmento
que poderíamos chamar de mais autoral do livro, Dráuzio coloca a própria
história, mesclando-a com uma síntese absolutamente clara do que se sabe sobre
os fatores de risco ligados ao aumento da criminalidade e da futilidade das
medidas tomadas pelo Estado até o momento para lidar com o problema, não só da
violência, mas também do aumento da população encarcerada. O epílogo é a pérola
do livro. Além de problematizar as situações sociais, econômicas e culturais,
no plano macro, Dráuzio se coloca no particular de sua condição de médico, e
mesmo na singularidade de sua vivência com cada presa, ouvindo as histórias e
entendendo, ou tentando entender como estabelecer algum contato de qualidade
com aquelas pessoas para exercer algum poder de cura, melhora ou alívio de
sofrimento.
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