O livro de Verônica Tostes
Daflon, “Tão longe, tão perto – identidades, discriminação e estereótipos de
pretos e pardos no Brasil” (Ed. Mauad X), é um largo apanhado sobre as questões
de raça e cor no Brasil, com foco na questão da categoria do pardo, o mestiço
brasileiro.
O texto é riquíssimo. Anotei uma
série de coisas e informações que gostaria de discutir, mas deixei o livro com
meu irmão e, no momento que faço esse textão, não tenho meu exemplar comigo. De
certa forma, isto não é um problema, pois o principal elemento que eu gostaria
de discutir não é exatamente textual: é o peritexto, isto é, os elementos
não-textuais que acompanham a escrita.
Escrever já foi uma coisa mais
fácil. Há algum tempo atrás, a arte da escrita se resumia a isto: escrever.
Caneta-tinteiro, esferográfica, máquina de escrever, computador. Pronto.
Escrevia-se, viabilizava-se uma forma de publicação, e a obra seguia seu rumo,
não exatamente desacoplada de seu autor, mas dona de um caminho próprio, seu.
Uns poderiam dizer que a
contemporaneidade borra a fronteira entre autor e obra, mas tenho a impressão
de que se trata de algo mais além: é como se esse ‘borrar’ fosse de alguma
maneira mais intenso, e nos aproximássemos de algo como uma fusão. De certa
maneira, autor e obra se confundem: o autor é também a sua obra.
A máxima de que não se julga um
livro pela capa é cada vez menos válida no século XXI. O livro não é também a
sua capa, como outrora, mas é, talvez, sobretudo a sua capa.
Ao me deparar com o livro de
Verônica, vi estampada na capa a ilustração de uma mulher. Toda desenhada em
preto e branco, a figura é a de uma mulher que não é nem preta, nem branca. Trata-se
da ilustração ‘La mulâtresse’, (‘A mulata’), de um artista francês chamado
François Auguste Biard (1798-1882).
Comecei a ler o livro, enfim. Mal
virei a primeira página, quis saber: qual, seria, afinal, a cor de Verônica?
Seu rosto não estampava a capa,
nem a quarta-capa, nem a orelha do livro. Joguei na internet seu nome completo,
tive dificuldades de encontrar sua imagem. Só quando achei no Facebook uma
imagem da autora no lançamento de seu livro, pude constatar o que internamente
eu já sabia: Verônica era branca, branquíssima, loira, óculos de gatinha, o
protótipo da intelectual de ciências humanas no Brasil. Sua imagem só foi
conseguida a muito custo.
Na FLIP 2017, o homenageado do
ano foi Lima Barreto, autor mestiço, suburbano e, de certa maneira, marginal.
Tomando para si o mote da diversidade, a FLIP ficou mais preta esse ano, com o depoimento de dona Diva Guimarães, a presença de Conceição Evaristo, a
participação da autora ruandesa Scholastique Mukasonga, e os debates literários
do ator/escritor/performer Lázaro Ramos.
Em virtude do meu interesse
recente pela língua francesa, procurei para comprar um livro da Scholastique,
na versão original. Por uma série de choques de horário (e também por não ter
tido interesse suficiente, confesso), não vi a palestra da autora. Mas ao
passear na livraria oficial da FLIP, me deparei com o livro ‘Ce que murmurent
les collines’, e tive interesse em comprá-lo (e efetivamente o comprei). O
livro tinha uma tira de destaque cobrindo boa parte da capa (não sei se vocês
já viram, mas é tipo uma faixa em que geralmente vem escrito ‘Livro mais
vendido do ano’, ‘Vencedor do Nobel de Literatura’ ou algo assim). No livro de
Scholastique, a tira de destaque trazia uma enorme foto da autora. Como vocês
podem imaginar, Scholastique é uma mulher negra.
O livro mais vendido da história de todas as FLIPs é o livro ‘Na minha pele’, de Lázaro Ramos. Lançado na FLIP
2017, o livro vendeu nada menos do que 1200 exemplares. É muita raça de
exemplar!
Raça, por sinal, estampada, na
capa do livro. ‘Na minha pele’ possui uma capa laranja adornada de cima a baixo
por uma belíssima foto de Lázaro Ramos, em versão cara-metade (e quem não se
imagina como a cara-metade de Lázaro?)
Comprei ‘Na minha pele’ e o li
inteirinho dentro do ônibus na volta de Paraty para o Rio. É bom. A mim, sinto
que não acrescentou muita novidade, mas penso que é uma obra com alta
capacidade de difusão popular. É escrito numa linguagem simples, é pequeno,
conversa com o leitor, conta uma história com a qual as pessoas podem se
identificar, não é escrito nem no jargão academicista empertigado, nem no ranço
odiento e amargurado da opressão. É um livro doce, bacana, com muitos
predicados.
A mim, negro, o livro de
Verônica, branca, diz muito mais que o livro de Lázaro, negro. Não é uma
comparação, porque são obras de naturezas diferentes, mas o que Verônica tem a
dizer, encontra muito mais eco nos meus interesses do que Lázaro. Meu lugar de
fala e minhas vivências passam mais por uma certa compreensão do mundo através
de um estudo acadêmico sobre raça do que pela experiência e vivência de mundo
sendo um corpo negro sofrendo um grau alto de opressão.
Decerto, não se trata de nenhum
absurdo. É uma vivência individual, cada pessoa vive e sente do seu jeito, da
sua maneira.
Mas... se eu não tivesse sido
exposto à indicação do livro de Verônica, será que eu o teria comprado?
Certamente, não. Eu pensaria... ‘hmmm, um livro sobre raça que foi escrito por
alguém que não mostra a sua cara? Essa mulher deve ser branca! E eu vou lá
comprar um livro sobre raça no Brasil escrito por gente branca? Eu, hein! Vou
comprar esse livro aqui que tem um negão bonito na capa....’ E eu teria saído
da livraria com o livro do Lázaro, sem saber que a leitura de Verônica teria
sido bem mais enriquecedora (para a minha pessoa, considerando a minha
subjetividade, é bom frisar mais uma vez).
É claro que não dá pra falar que
existe racismo reverso no Brasil. É claro que Verônica teve uma série de
benefícios no mundo por ser branca, e Lázaro (e também Scholastique) sofreram
violências e opressões físicas e simbólicas por serem negros.
As revistas de moda e os
comerciais estão todos hiperpovoados pela branquitude. Isso é ponto pacífico.
Mas se dedicarmos a nossa atenção
ao nosso feudo pequeno-burguês, ao nosso gueto intelectualizado que ama a
diversidade e idolatra o textão, percebemos que preto vende. E vende bem.
De alguma forma, esse movimento
de consumo da imagem preta pode ter a ver com uma certa exotização e
fetichização do corpo negro. ‘Olha, que legal, uma mulher preta que perdeu a
mãe numa guerra civil de um país africano cujo nome eu mal sei pronunciar. Ai,
me dá aqui esse livro, vou levar.’
Por outro, tem a ver com um certo
empoderamento mesmo, de gente preta que está povoando os espaços de poder,
dando palestras na FLIP e comprando livros. Isso é verdadeiramente legal!
Mas, se por um lado, pretos
começam a ser representados, os pardos permanecem invisíveis. É como se os
pardos estivessem à margem da desmarginalização preta. O empoderamento pardo
ainda não chegou.
Essa questão dos pardos é
interessantíssima, mas vou deixar para que vocês a acessem através do livro de
Verônica. Ela torce nossas ideias preconcebidas sobre o assunto e, manifestando
certa independência de pensamento, conduz o texto de maneira bastante agradável
e chega a conclusões interessantes. Leiam o livro, vale a pena!
Por fim, duas observações: cada
vez mais, livro é imagem! ‘Na minha pele’ corre o risco de ser um fiasco no
Kindle. Ou, ao menos, ele não será tão bem vendido quanto o for na vida real.
‘Na minha pele’ tem em sua capa uma parte importante do que tem a dizer, e um
componente importante de suas vendas. Uma hipótese é que o livro digital em geral (Kindle, etc.) não deslanchou como se supunha por causa desse vínculo
entre texto e imagem. As pessoas não querem só ler: elas querem ver, querem
consumir a imagem de seus livros.
A segunda observação é a respeito
de um texto que escrevi há dois anos atrás, intitulado "Castro Alves, Gregório Duvivier e o protagonismo dos movimentos sociais". Minha
hipótese à época era de que, transmutado para o século XXI, Castro Alves seria
algo como Gregório Duvivier. Era o branco a ser ouvido. Sua imagem, contudo, de traços
que apontavam em diferentes direções, possivelmente em decorrência de alguma
mestiçagem, era sistematicamente corrigida pelos retratistas da época, num
contumaz e diligente processo de embranquecimento.
Talvez Castro Alves, no século
XXI, se falasse a uma plateia na FLIP ou se quisesse vender seu livro de poemas
na livraria oficial do evento, deixasse o cabelo crescer para que seus cachos
ficassem bem aparentes. Talvez rolasse até, muito de leve, aquele Photoshop pra
engrossar um pouco os lábios e deixar o nariz um pouco menos afilado. E ele,
representado como negro autêntico em toda a sua iconografia presente e vindoura,
seria aclamado como ‘um dos nossos’, ‘gente da gente’, ‘finalmente um preto
falando pra preto sobre a escravidão’.
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