domingo, 3 de setembro de 2017

Identidade e Morenidade

Tão Longe, Tão Perto é o primeiro material de conteúdo acadêmico sobre racismo com que tenho contato. Até então, tudo o que via eram textos jornalísticos ou de opinião, além dos textos do GEB que abordam o tema, mas não são diretamente sobre ele. 
  
Verônica produziu uma obra linda. Muito hábil nas palavras, ela conseguiu colocar um saber técnico sem a aridez dos textos acadêmicos, colocando as próprias impressões nos momentos certos, comentando os resultados de maneira sempre crítica e sóbria. Apenas em um ou dois pontos acho que ela exagera nos termos técnicos estatísticos, considerando que o livro não é a tese, mas isso não compromete em nada o todo da obra. 
  
Para começar a discussão, ela logo coloca a noção de raça na espécie humana como construto cultural, portanto fluido e suscetível a toda sorte de modificações a partir de diferentes contextos e fatores influenciadores. É inútil, pois, buscarmos uma determinação purista ou essencialista do que seria a raça ou suas variações, pois as diferenças biológicas significativas param no nível da espécie. 
  
A revisão bibliográfica e a pesquisa própria de Verônica têm a enorme vantagem de se debruçarem sobre a realidade brasileira, onde a morenidade é importante e significativamente diferente da negritude e da visão estadunidense da “gota de sangue”. As pesquisas são pragmáticas e realistas. 
  
Esse interesse pela mistura é fundamental, pois a ciência gasta muito tempo e recursos na busca de purezas, de fatores isolados, marcadores biológicos puros, quando na verdade a vida é só mistura. A grita biologia (pura) versus sociedade (cultura) deixa de fazer sentido quando estudamos a sério e olhamos com cuidado as relações humanas e suas contradições. 

Uma boa parte da minha leitura de TLTP aconteceu na FLIP, que em 2017 homenageou Lima Barreto. Sob essa influência identifiquei na trajetória de vida Lima Barreto alguns pontos presentes no livro da Verônica. Lima era um escritor brilhante, suburbano, e, apesar de relativamente remediado (tinha trabalho regular), tinha dificuldade de se inserir nos estratos sociais superiores. Vivia o drama do pardo que pode ascender socialmente. Diferentemente de seu antecessor pardo mais celebrado, Machado de Assis, Lima denunciou em sua obra (isso eu percebi no único romance dele que li, Clara dos Anjos) o preconceito racial e social. Teve importante reconhecimento profissional em vida, mas hesitava sempre em se inserir no estrato branco dos mais abastados, a ponto de por mais de uma vez apresentar e retirar candidatura a vaga na Academia Brasileira de Letras. Atormentado por essas ambivalências, sofria com o alcoolismo. Sua obra mostra claramente esse ressentimento com a sociedade que o aceitava apenas parcialmente.  Machado de Assis ignorou o racismo em sua obra e recebeu todo o reconhecimento possível em vida. Lima Barreto denunciou o problema e sofreu as consequências. 
  
A noção de mestiçagem e o papel dos mestiços é particularmente importante no caso do Brasil, onde a mestiçagem foi incorporada ao discurso identitário nacional, seja como característica boa ou indesejável. A ideia da miscigenação como força do brasileiro, a partir de Gilberto Freyre, foi muito criticada por ignorar a discriminação e o preconceito sofrido também pelo “pardo” ou “mulato”. Sinceramente, eu não concordo que Casa Grande e Senzala possa ser resumido nesse tom conciliatório com que muitas vezes a obra é citada. 

Tão Longe, Tão Perto expõe também a rejeição das categorias intermediárias de cor da pele pelo movimento negro. A categoria “pardo” serviria para dividir os negros. Neste caso, é importante notar a particularidade do caso brasileiro, em que variações no tom da pele implicam, necessariamente, variações no grau de preconceito. Um dado interessante, exposto no estudo sobre denúncias de racismo nas delegacias de São Paulo, é que os termos usados nas injúrias aludem ao que a vítima tem de negro, não de pardo 

Há um efeito interessante no relativo à ascensão social dos pardos, que a autora desenvolve muito bem. Que a aceitação de alguns pardos-quase-brancos serviria como forma de se mostrar que a barreira racial no Brasil não é tão significativa, aplacando a revolta dos que querem ascender. Vejo isso como parte de um esquema maior, que valoriza a narrativa do heroísmo e da exceção para deslocar o caráter coletivo do racismo para o particular do mérito do esforço individual. Trata-se, não tenho dúvida, do velho esquema de responsabilizar a vítima.  

No interessantíssimo estudo em que coloca, lado a lado, a relação entre discriminação, classe e cor, fica evidente a diferença entre pretos e pardos, em especial na camada mais abastada. Ali os pardos são mais aceitos como quase brancos, ao passo que com pretos a percepção de discriminação é mais aguda. Isto não deixa dúvida, portanto, que, se em alguns momentos classe e cor podem se confundir, em outros não há a menor confusão. O preconceito é de cor.  

A separação entre o moreno e o pardo merece consideração. Pardo permanece como termo oficial, presente nas estatísticas e estudos, enquanto poucos se descrevem espontaneamente como pardos. Já moreno e suas derivações são utilizados de maneira muito mais ampla pelos próprios sujeitos. Se por um lado isso distancia a pesquisa do dia-a-dia do léxico de cores, por outro cria um nicho protegendo o termo pardo de todas as oscilações vocabulares inerentes ao idioma.   

Neste nosso país marcado pela escravidão, é impossível dizer que o racismo é apenas um problema de brancos ou de negros, ou que a luta contra ele deve se restringir a pessoas desta ou daquela cor. Considerando a penetração ampla da escravidão em diversos estratos sociais, historicamente, e como isso contribuiu para a formação de um povo com desigualdades tão gritantes, a saída para a criação de uma sociedade mais justa passa não só pelo acesso dos negros e pardos à cidadania, mas também pela compreensão dos privilegiados que privilégios não fazem sentido. 

No Brasil a luta pela igualdade racial ganha força, hoje, num momento em que há maior valorização do ganho, lucro e ascensão no plano pessoal do que no coletivo.  O enfraquecimento geral das lutas coletivas, como sindicatos e movimentos sociais em geral prejudica o avanço das correções das desigualdades que prejudicam tanto a nação.  

Após a leitura, fica ainda mais evidente que cor de pele e "raça" são conceitos derivados da cultura, cuja concretude é dada pelo comportamento das pessoas, dos meios de comunicação e altamente variáveis no tempo e no espaço. O livro não propõe aprisionar o conceito e defini-lo, o que se mostraria um esforço fútil, mas entendê-lo como algo fugidio que tem sua materialidade nos prejuízos sofridos pelos discriminados. 
  

Nenhum comentário:

Postar um comentário