segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Aprendizado e seletividade



Em seu livro "América Latina: Males de Origem", Manoel Bonfim procura analisar traços dos povos latino-americanos (com ênfase no caso brasileiro) que possam nos ajudar a entender o desenvolvimento (ou falta dele) nestes países. Médico de formação (Bonfim estudava e pesquisava sobre psicologia e pedagogia), em seu livro há fortes influências da biologia e da psicologia, fazendo com que, inúmeras vezes, o autor recorra a comparações entre os processos sociais e aqueles que ocorrem no ambiente natural e na psique humana. 

Para entender as razões do atraso das ex-colônias dos países ibéricos, Manoel faz uma breve análise da história de Portugal e Espanha, apontando o caráter predatório e beligerante destes povos - e de que modo estes passaram a uma conduta "parasitária" em relação às colônias recém-descobertas na América. Feita esta leitura, nos capítulos seguintes o autor discorre acerca do modo de "transmissão" das "características parasitárias" dos países colonizadores para os colonizados, em um exercício de "hereditariedade social". Nenhuma evidência há de que tal fenômeno exista no plano social, exceto o de que era "óbvio a toda a gente"que, se os pais possuem uma determinada característica, seus filhos hão de herdá-las - e por isso as sociedades seguirão o mesmo padrão, como ser percebe do trecho:

"Refletindo um pouco sobre o assunto, reconhece-se que seria absurdo negá-la. É incontestável que o homem herda dos seus progenitores os caracteres psicológicos da classe, da ordem e da espécie; e, herdando os caracteres da espécie, herda também os caracteres individuais dos pais. Esta herança psicológica dos caracteres paternos é evidente nos casos típicos: de filhos de um mesmo casal tendo recebido uma educação idêntica, e dos quais um reproduz o caráter paterno, outro o materno; ora, se a formação do caráter dependesse apenas da educação e imitação, eles deveriam apresentar as mesmas qualidades, pois tiveram a mesma educação. Se a hereditariedade existe para as qualidades que caracterizam a espécie, e para as qualidades individuais dos progenitores, não pode deixar de existir para os traços psicológicos, típicos, da raça ou do grupo. Nem se compreende que seja de outra forma. Quando um inglês herda de um dos seus progenitores a veia humorística, herda, por força, os traços dominantes na mentalidade inglesa, sem os quais não se compreende o humor. As categorias menos extensas implicam os caracteres típicos das mais extensas; o tipo do humorista implica o do inglês, o do inglês –o do ocidental. A noção de raça, todos o sabem, baseia-se não só nos traços anatômicos como nos caracteres psicológicos. Entre os animais, nós vemos que a hereditariedade transmite os caracteres morfológicos como as qualidades intelectuais e morais. Um setter, ou um pointer, herda não só a pelagem e as orelhas e a compleição dos seus progenitores, como as suas aptidões mentais e qualidades morais. Para Ribot, o caráter nacional é a expressão última da hereditariedade social; ele insiste, por isso, para que se estude o papel da hereditariedade na história, como lei fisiológica e psicológica (...)"

Seguindo o pensamento do autor, pelo fato de os povos latino-americanos serem colonizados por "sociedades parasitas", "herdaram" alguns conjuntos de características, separadas em: gerais (ojeriza ao trabalho manual, que deveria ser realizado por escravos e índios; pouca importância ao desenvolvimento social, importando apenas retirar individualmente o máximo de lucro e voltar para a metrópole o quanto antes; gosto pelo formalismo e pelo ornamento - nas roupas, nos gestos, nas leis e no pensamento, que era importado de livros estrangeiros e pouco afinado à realidade; ódio entre as classes sociais, fruto da escravidão e da violência da colonização; pouco ou nenhum respeito ao Estado, que possuía traços eminentemente arrecadador e autoritário; pouco gosto pela observação dos fatos e pelo pensamento racional e científico; nenhum ou pouco interesse pela educação e pelo desenvolvimento do espírito crítico nas classes mais pobres); e especiais, que se dividiam em herança, educação e reação. Ao apontar o quanto destas características eram  adquiridas pela via da herança, Bonfim aponta que, paradoxalmente, os povos latino-americanos tanto tinham a tendência de absorver tais características e conservá-las - visto que o conservadorismo era também uma das qualidades dos povos ibéricos parasitários, de modo a manter as colônias parasitadas por muito mais tempo - como também de refutar tais características - e para isso a educação seria um instrumento fundamental para a reação a tais "males de origem". 

Manoel Bonfim foi um dos muitos cronistas que buscaram uma explicação para entender o que é a América Latina, de forma geral, e o Brasil, de maneira específica. Ao utilizar diversas comparações entre processos sociais e processos psicológicos e biológicos, Bonfim foi um homem do seu tempo: diversos são os autores estrangeiros mencionados pelo médico para ratificar as metáforas e analogias utilizadas. A estratégia argumentativa estava em alta no final do século XIX, início do século XX (e é sempre bom lembrar que o livro foi publicado em 1903), e pode parecer ultrapassada ao leitor contemporâneo - e é. 

Porém, Bonfim foi o homem que desafiou o argumento, em moda à época, de que a miscigenação era a causa da deterioração dos povos latino-americanos; foi o médico que discutiu finanças públicas e o papel dos investimentos sociais em educação, infra-estrutura e proteção ao trabalhador, quando o tema nem sequer aparecia nos discursos dos homens públicos nacionais; foi o intelectual que desprezava as fórmulas prontas dos livros estrangeiros e que valorizava o pensamento científico decorrente da observação dos fatos, além da educação, técnica e crítica, para as massas populares; foi o cidadão que apontou os horrores da escravidão, da colonização feita pelo europeu e do erro em se tentar resolver tais males com apenas a canetada de uma lei; foi o membro de elite que se recusou a menosprezar o negro, o indígena e o mestiço; e, acima de tudo, foi o brasileiro que apontou a importância do voto do analfabeto, dos direitos dos trabalhadores, da importância da inteligência na produção agrícola e industrial, do dano causado pelo pensamento retrógrado e conservador e do erro no incentivo à imigração de novos trabalhadores braçais a servir de mão-de-obra barata no país. Manoel Bonfim foi, sem sombra de dúvidas, um pensador à frente do seu tempo - a despeito da fórmula argumentativa que hoje soa datada ao se fazer comparações da sociedade com a natureza.

Contudo, a despeito do tom revolucionário, há aspectos da sua obra que demonstram um certo - porque não? - conservadorismo no seu pensamento. Não há uma única referência ao papel da mulher na sociedade; a natureza é enxergada como algo a ser explorado pelo homem - com mais eficiência, mas ainda assim, apenas uma total exploração; e, mesmo quando fala da importância da educação, tem-se a impressão de que a ênfase está em um ensino mais técnico do que crítico, como se "o povo", de uma forma geral, não estivesse à altura de um pensamento científico mais refinado. Ao mesmo tempo que Bonfim traz aspectos muito transformadores em sua defesa dos povos latino-americanos, há também um certo conservadorismo em sua análise - o mesmo conservadorismo que "herdamos" dos colonizadores que tanto nos parasitaram. O quanto o próprio autor não "herdou" do conservadorismo que tanto refuta?

Até onde Bonfim está certo ao dizer que "herdamos" características dos nossos povos colonizadores? Se for verdade, estamos permanentemente fadados a viver ciclos de conservadorismo e de progressividade - com estes sendo mais curtos e menos intensos do que aqueles? E quando nossos "povos parasitas" entrarem em ciclos de conservadorismo, restrição de direitos e intolerância, estaremos nós fadados a seguir o mesmo roteiro - como agora assistimos à Europa mergulhar em um mar de governos liberais restritivos de direitos e políticas sociais, de intolerâncias e de xenofobia?

Talvez não seja meramente uma questão de "herança". Talvez seja uma questão de aprendizado e seletividade. Da mesma forma como podemos olhar para um autor ao mesmo tempo revolucionário e conservador como foi Manoel Bonfim - mais revolucionário do que conservador, frise-se -, e retirar o melhor do seu pensamento, talvez possamos fazer o mesmo com o aprendizado e a trajetória vivida por outros povos. O mesmo se diga sobre os cronistas e pensadores pátrios, alguns já lidos pelo Grupo de Estudos até aqui: Gilberto Freyre, Roberto Damatta, Sérgio Buarque de Holanda, Paulo Prado, Celso Furtado. Não é uma tarefa fácil. O conservadorismo é latente na sociedade latino-americana (e em nós mesmos, ainda que de maneira inconsciente), e enfrentá-lo exige que façamos um exercício permanente de educação política e amadurecimento social - inclusive amadurecimento das nossas próprias posições sociais e políticas. 

Nesse sentido, cada um dos cronistas lidos até aqui oferecem um exercício importante de reflexão - sobre o país, sobre nossa história, sobre nosso povo - e também sobre nossas próprias e íntimas convicções políticas e sociais. A leitura do livro do Manoel Bonfim vem apenas acrescentar alguns novos organismos ao corpo de leitura que temos feito até aqui. E se eu mesma não resisto a fazer comparações biológicas na minha análise, como eu poderia condenar Manoel Bonfim por fazer o mesmo, após uma defesa tão apaixonada dos potenciais do nosso país e nossa gente?


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