Um defeito de sociedade
Apesar de ser um livro de literatura, “um
defeito de cor” é tão importante para entender a formação social do Brasil como
qualquer outro livro clássico ou acadêmico que lemos no GEB. A diferença é que lendo
com empatia (ou talvez nem seja preciso) é preciso ter estômago. A história de
Kehinde foi apenas uma de milhares de meninas africanas vindas para o Brasil
durante todos os séculos de escravidão. Enxergar a vida do negro escravo pelo
olhar dela foi como se virássemos de cabeça para baixo os livros de história. O
livro se inicia mostrando uma África de exploração, violência, pobreza, mas
também uma rica cultura de povos, costumes e crenças. O Brasil, com base na escolástica
(igreja católica) e sua população de brancos, senhores das fazendas, os
estrangeiros e os escravos, num momento em que a vida ainda era rural, mas já
com a formação de algumas principais cidades. Assim, ao longo do livro a
riqueza de detalhes daquele tempo também fez parte da imersão para conseguirmos
alcançar em todos os sentidos, um pouco da história da nossa população negra,
tão marginalizada e ao mesmo tempo tão forte e viva.
A discussão que gostaria de propor ao GEB diz
respeito as mudanças da nossa sociedade a partir da história narrada a partir
de 1810 e o que significou isso na perspectiva histórica de 1910 e o que hoje é
ser negro no Brasil dos anos 2010.
Em 1910, teses como a de Nina Rodrigues influenciavam
com seus estudos sobre a inferioridade do negro que ainda era vista como um
fenômeno de ordem perfeitamente natural, “produto da marcha desigual do
desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e
seções". Assim, não houve nenhum tipo de política pública para inserção do
negro no mercado do trabalho, sendo incentivado a imigração dos estrangeiros
para o trabalho e branqueamento da população, já que para muitos países, se o
nosso país fosse formado por negros, ele nunca seria desenvolvido. A teoria da
Eugenia era defendida também por Oliveira Vianna, assim todo projeto dele foi
em torno de um tipo único e a tesa do branqueamento que visava o “cruzamento”
de homens brancos com mulatas. O negro era visto como incapazes (imputáveis),
por conta do determinismo racial, ideia defendida nessa época.
Olhando de maneira superficial, podemos cair na
armadilha de afirmar veementemente que a vida do negro e, de como ele é visto
pela sociedade, melhorou ao longo desses 200 anos. Eu diria que não. É notório
e diário o preconceito pelas ruas, escolas, universidades e outros locais
públicos e privados, o percentual gritante de mortes (3x mais do que brancos),
o percentual de negros pobres e abaixo da linha da pobreza (em relação aos
brancos), a violência policial e o estigma da mulher mulata promíscua.
Indico alguns aspectos que, de alguma maneira,
já passaram pelo GEB e que hoje poderão ser melhor discutidos como possíveis
marcos de uma tentativa de igualdade dos negros na sociedade brasileira. (i)
a liberdade oriunda da abolição (séc. XIX) e a apropriação de direitos; (ii) comprovação pela ciência (infelizmente
tivemos que recorrer a esta) da não existência de raças e, consequentemente de
uma não inferioridade ou, melhor, de uma não hierarquização de povos e cores
(séc. XX); (iii) presença de intelectuais
brasileiros, como Florestan Fernandes, que desmascarou o mito da miscigenação
como elemento essencial para formação do povo brasileiro e apresentou elementos
que a sociedade brasileira não deu ao negro atenção devida após a abolição e na
urbanização do país (séc. XX); e (iv)
políticas públicas focadas na população negra (cotas e etc.), a partir da constituição
de 88 (séc. XX e XXI), (v) empoderamento
do negro, da multiplicação de movimentos sociais e da ampliação de direitos
(séc. XX e XXI).
Entretanto, apesar dos avanços não fomos capazes
de superar “um defeito de sociedade” que ainda enxerga na cor da pele um abismo
entre as relações e um verdadeiro projeto de nação (provocação!).
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