segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Um defeito de sociedade

Apesar de ser um livro de literatura, “um defeito de cor” é tão importante para entender a formação social do Brasil como qualquer outro livro clássico ou acadêmico que lemos no GEB. A diferença é que lendo com empatia (ou talvez nem seja preciso) é preciso ter estômago. A história de Kehinde foi apenas uma de milhares de meninas africanas vindas para o Brasil durante todos os séculos de escravidão. Enxergar a vida do negro escravo pelo olhar dela foi como se virássemos de cabeça para baixo os livros de história. O livro se inicia mostrando uma África de exploração, violência, pobreza, mas também uma rica cultura de povos, costumes e crenças. O Brasil, com base na escolástica (igreja católica) e sua população de brancos, senhores das fazendas, os estrangeiros e os escravos, num momento em que a vida ainda era rural, mas já com a formação de algumas principais cidades. Assim, ao longo do livro a riqueza de detalhes daquele tempo também fez parte da imersão para conseguirmos alcançar em todos os sentidos, um pouco da história da nossa população negra, tão marginalizada e ao mesmo tempo tão forte e viva.

A discussão que gostaria de propor ao GEB diz respeito as mudanças da nossa sociedade a partir da história narrada a partir de 1810 e o que significou isso na perspectiva histórica de 1910 e o que hoje é ser negro no Brasil dos anos 2010.

Em 1910, teses como a de Nina Rodrigues influenciavam com seus estudos sobre a inferioridade do negro que ainda era vista como um fenômeno de ordem perfeitamente natural, “produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas diversas divisões e seções". Assim, não houve nenhum tipo de política pública para inserção do negro no mercado do trabalho, sendo incentivado a imigração dos estrangeiros para o trabalho e branqueamento da população, já que para muitos países, se o nosso país fosse formado por negros, ele nunca seria desenvolvido. A teoria da Eugenia era defendida também por Oliveira Vianna, assim todo projeto dele foi em torno de um tipo único e a tesa do branqueamento que visava o “cruzamento” de homens brancos com mulatas. O negro era visto como incapazes (imputáveis), por conta do determinismo racial, ideia defendida nessa época.

Olhando de maneira superficial, podemos cair na armadilha de afirmar veementemente que a vida do negro e, de como ele é visto pela sociedade, melhorou ao longo desses 200 anos. Eu diria que não. É notório e diário o preconceito pelas ruas, escolas, universidades e outros locais públicos e privados, o percentual gritante de mortes (3x mais do que brancos), o percentual de negros pobres e abaixo da linha da pobreza (em relação aos brancos), a violência policial e o estigma da mulher mulata promíscua.

Indico alguns aspectos que, de alguma maneira, já passaram pelo GEB e que hoje poderão ser melhor discutidos como possíveis marcos de uma tentativa de igualdade dos negros na sociedade brasileira.  (i) a liberdade oriunda da abolição (séc. XIX) e a apropriação de direitos; (ii) comprovação pela ciência (infelizmente tivemos que recorrer a esta) da não existência de raças e, consequentemente de uma não inferioridade ou, melhor, de uma não hierarquização de povos e cores (séc. XX); (iii) presença de intelectuais brasileiros, como Florestan Fernandes, que desmascarou o mito da miscigenação como elemento essencial para formação do povo brasileiro e apresentou elementos que a sociedade brasileira não deu ao negro atenção devida após a abolição e na urbanização do país (séc. XX); e (iv) políticas públicas focadas na população negra (cotas e etc.), a partir da constituição de 88 (séc. XX e XXI), (v) empoderamento do negro, da multiplicação de movimentos sociais e da ampliação de direitos (séc. XX e XXI).
                 

Entretanto, apesar dos avanços não fomos capazes de superar “um defeito de sociedade” que ainda enxerga na cor da pele um abismo entre as relações e um verdadeiro projeto de nação (provocação!). 

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