sábado, 10 de setembro de 2016

"Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro"



Caetano e Bethânia recitam/cantam O Navio Negreiro, de Castro Alves

Apesar das quase 1000 páginas do livro Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves, a leitura avança rapidamente. O início é bem violento, com “cenas fortes”, e confesso que tive vertigem ao ler o ataque dos selvagens à família da Kehinde. Fiquei curiosa em ler sobre a história da África, suas guerras e sobre como surgiu o tribalismo.

Quando Kehinde revelou que aqueles escritos eram uma “carta” para o filho desaparecido passei a considerar a narrativa em primeira pessoa um equívoco, porque comecei a me incomodar com a impossibilidade de tantos detalhes serem lembrados. Afinal, tinha sido até ali um livro com descrições minuciosas de conversas, rituais, paisagens, vestimentas, arquiteturas etc, em um volume gigantesco de informação. No entanto, antes da revelação, a primeira pessoa teve papel decisivo na criação de empatia em mim, e o relato da própria Kehinde me fez entender que a escravidão não ocorreu com uma “massa” humana sem rosto e sem alma. CADA pessoa arrancada da África tinha gostos, história, casa, objetos, parentes, amores, sonhos, crenças, rituais, saberes, vizinhos, identidade, assim como eu. E que isso tudo lhes foi extirpado aqui no Brasil, restando somente sentimentos como medo, desespero, saudade, ódio e outros que não me foi possível sentir nem imaginar por não ter estado lá. Foi um exercício muito doloroso.

Mais doloroso ainda foi lembrar que os negros até hoje são vistos como uma massa humana indefinida, e que ainda não enxergam sua identidade, sua história e atiram para matar. Quando a prefeitura impede que ônibus de regiões mais pobres - e mais negras, por consequência - cheguem até as praias com o discurso – apoiado pela elite – de evitar arrastões, indicando que, para o poder público, existe uma massa negra TODA criminosa. Não há espaço para individualidade do negro. Não importa seu caráter, quantas pessoas já ajudou, quanto troco errado já devolveu, quanta violência policial já sofreu, quantas pessoas já viu serem mortas pelo tráfico, quanto medo de bala perdida já sentiu em casa durante tiroteios, quantos dias foi pra escola com fome e teve lá sua única refeição do dia, o quanto lutou para conseguir estudar desnutrido, quantas vezes já foi expulso de restaurantes, mesmo podendo pagar, por estar maltrapilho, quantas vezes já resistiu ao aliciamento de traficantes oferecendo “trabalho”, quantos amigos de infância foram mortos, o quão pouco ganha em seu subemprego, quantas crianças órfãs já ajudou a criar em sua comunidade etc. Nada disso importa, somente a cor da pele.  É como se ela disparasse uma mensagem contra si própria: “Atira!”.


Algumas dúvidas que surgiram:
  • Muito mais homens que mulheres africanas eram trazidos para o país. Este arranjo demográfico não-natural teve algum efeito social significativo na população negra cativa da época?
  • Kehinde fala que os escravos evitavam se casar por medo de serem separados em uma venda. Será que isso explica, pelo menos em parte, o baixo crescimento demográfico da população negra cativa?
  • Fiquei curiosa sobre a dita "superioridade” dos muçurumins em relação aos outros negros e gostaria de saber como eles tinham acesso à educação formal em África e os outros não.

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