O livro “Um
defeito de cor” tem a dupla função de contar uma história envolvente e ao mesmo
tempo abordar questões sociais importantes sob uma ótica diferente daquela que habitualmente
se encontra nas obras clássicas sobre o período da escravidão no Brasil. Sobre os aspectos históricos, a partir do
livro pude descobrir várias nuances dentro da condição de escravidão. O escravo
que compra a alforria, o escravo de ganho, o escravo ou ex-escravo que tem
escravo, o escravo que consegue montar negócios. Curioso pensar nos direitos
que os escravos tinham e de como, mesmo nessa condição miserável, parecia haver
alguma possibilidade de melhora de vida para eles. Interessante a dinâmica
decorrente da existência da ajuda mútua, nos consórcios de alforrias, e também interessante
pensar na "exploração mútua".
Um outro
aspecto que para mim foi um dos mais positivos e enriquecedores do livro foi a
possibilidade de contato com a religião africana, o que nos leva a perceber os
acontecimentos a partir de uma outra interpretação do mundo. Embora a
personagem, no seu processo de colonização, tenha aderido ao sincretismo com o
cristianismo, permanece durante toda a narrativa um jeito meio africano de dar
sentido aos fatos. Isso cria um certo misticismo que paira no ar a todo momento
da leitura. Em alguns trechos,
inclusive, a narrativa adquire um quê de fantasia. O livro também transmite
certo encantamento com alguns aspectos da cultura africana. Percebi o cuidado
em descrever os rituais religiosos e achei belíssima a descrição do momento em
que a personagem tem contato com a capoeira. Também gostei de saber da
existência dos escravos muçulmanos e da discriminação que havia em relação a
eles. Aliás, mesma discriminação também relatada na diferenciação que se fazia
entre os negros nascidos no Brasil e os africanos.
Agora,
permitam-me analisar Kehinde. Primeiramente, vou contar algo que me aconteceu
pouco após iniciar a leitura do livro.
Eu fui almoçar com uma amiga psicanalista e falei do livro. Disse um
pouco sobre a história da autora e de sua ida à Bahia para se inspirar a
escrever. Com a maior naturalidade minha amiga disse que a autora estava
descrevendo no livro o que ela gostaria de viver, que o livro era uma projeção
do desejo dela. Eu até então não tinha pensado nisso, afinal, nunca tinha
passado pela minha cabeça que alguém desejaria ser uma escrava. Mas depois
percebi que fazia todo o sentido.
Apesar de ter
sido escravizada, a maior característica da personagem é ser livre de
espírito. É curioso como ela nunca deixa
de acreditar que o melhor vai acontecer.
Mesmo com um trauma terrível na infância, em nenhum momento ela se vê
limitada ou fadada a sofrer. Sua autoestima é elevada, ela aproveita todas as
oportunidades de aprender e tem ótimas relações interpessoais, desperta a
confiança das pessoas facilmente. Embora
ela cite já no meio do livro não ser bonita, tem facilidade de conquistar os
homens que deseja. Mas ela não se apega emocionalmente aos parceiros e não é
romântica.
Os filhos também não tiram sua liberdade. Mesmo
quando ainda são muito pequenos, ela conta com ajuda para cuidar deles, seja da
sinhá que deseja "adotar" seu primeiro filho, seja de um marido
zeloso e cuidador que, mais do que dividir tarefas no cuidado às crianças, na
verdade assume esses cuidados. Também em relação aos filhos, mesmo com a morte
de um e o sumiço de outro e mesmo nunca deixando de buscar o filho
desaparecido, ela descreve algumas passagens de vida como anos muito felizes.
Ou seja, a personagem não se deixa abater por esses traumas.
Uma coisa que
me fez rir sozinha, pensando como minha amiga psicanalista acertou em cheio,
foi descrição da personagem Ressequida. Qualquer pessoa acharia muito ruim ser
trocada por outra, mas a autora criou a "outra" dos sonhos: feia,
infeliz, mal humorada, estéril, que não faz sexo com o amado e ainda por cima
só teve a companhia dele por interesse. Assim fica mais fácil sobreviver a um
abandono!
Interessante
também o empreendedorismo da personagem. Kehinde sai da condição de órfã
escravizada e vendida como animal para se tornar uma poderosa milionária
africana. Parece que os negócios são a maior fonte de motivação de vida para Kehinde.
Graças a eles, ela realiza vários desejos de consumo e poder. Chamou minha atenção especialmente a parte em
que ela justifica seus negócios com um mercador de escravos. A autora reserva
uma página para argumentar, em suma, que, se ela não fizesse aquilo, outros o
fariam. E assim dá por resolvida a contradição que existe em ser uma pessoa que
no passado se engajou em luta armada pela abolição e depois acaba por fazer
negócios com mercadores de escravos. Curioso que, se por um lado essa
trajetória da Kehinde pode ter o efeito positivo de melhorar a autoestima da
mulher negra, que se vê representada na personagem, por outro lado, poderia dar
certo reforço ao mito da meritocracia, ao fazer parecer, por vezes, que seria
fácil sair de escrava a sinhá. Se bem que, em sua trajetória de enriquecimento,
a personagem consegue a ajuda de um casamento com um branco e de um
providencial tesouro achado por acaso. O que talvez favoreça menos a ideia da meritocracia
e mais a crença no dinheiro como forma de atingir a felicidade.
Bem,
resumindo, a personagem é corajosa, de espírito livre e não é dramática, embora
os fatos narrados às vezes sejam emocionalmente impactantes por si. Lendo o
livro me senti por muitas horas estando na pele de uma mulher negra escravizada,
tentando a todo momento conseguir respeito da sociedade apesar de sua origem. Impossível
não fazer um paralelo com o preconceito que existe ainda hoje no Brasil. Foi
muito interessante se aproximar das vivências dessa mulher negra e se imaginar
em seu lugar.
Isso me fez
pensar em como, ao julgar a sociedade, precisamos fazer um esforço de enxergar
as classes sociais de dentro. Entender "quem são e como vivem" (#je
#sais) os outros nos leva a fazer contato com o que eles sentem e facilita a compreensão
de certos fenômenos. Nós, na condição de membros de uma classe privilegiada e
de esquerda, tendemos a ter certa dificuldade em compreender como as classes
mais pobres aceitam toda a exploração sem se revoltarem. Vendo “de cima”,
parece para nós muito fácil apontar motivos como ignorância para isso. A
interpretação marxista é que a alienação é a responsável. E assim, distantes, adquirimos um ar de
superioridade em relação aos "pobres coitados alienados e
explorados". Mas, quando a gente se aproxima do sentimento dessas pessoas,
fica mais fácil imaginar que elas fizeram uma escolha. Elas escolheram
viver. De forma consciente ou não, elas
sabem que o inimigo é mais forte e entre lutar ou se render, escolheram se
render àquela condição social. E, mesmo com todos os problemas, vão construindo
sua vida da melhor forma possível. Talvez
essa seja a grande contribuição do livro, criar empatia com os escravos do
passado e seus herdeiros do presente.
Gostei muito
do livro e me sinto grata por ter tido a oportunidade de lê-lo. Além de ter
aprendido muito com o livro, foi uma leitura agradável, embora em alguns
momentos a narrativa tenha adquirido um ritmo menos empolgante. Estou curiosa
para saber qual dos muitos aspectos interessantes do livro vai ser enfatizado
por cada um.
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