sexta-feira, 9 de setembro de 2016

País Rico É País Sem Pobreza

(minha cópia de Um Defeito de Cor, que tem um defeito de cor, provavelmente provocado por Iemanjá, minha mãe, que sentiu ciúme de eu andar por aí carregando um livro tão Oxum)


Um Defeito de Cor é um livro grande, mas condensado. Condensa várias das histórias possíveis que um escravo pode viver, seja na saga da personagem principal ou nas veredas de outras personagens.

O livro é todo emocionante, desde o começo. A história de sua infância na África, antes mesmo da captura para ser vendida como escrava mostra quão dura e difícil a vida era lá naquela época, dando uma ideia de que ainda pode ser assim, daquele mesmo jeito em alguns lugares.  No entanto, em graus diferentes, os núcleos opressivos ali colocados permanecem. Sucessivas derrotas pela força, a morte dos parentes, o abandono dos pais e dos homens, Kehinde sofre desde a infância as marcas de ser mulher, de ser africana.

Àquelas injustiças outras vão se somando, e se for comentar todas aqui, o textão vai ficar insuportável. O livro me faz lembrar que a vida não é nada justa, e que mesmo as pessoas, que são quem poderiam torná-la ao menos um pouco mais justa, não o fazem.

Algumas descrições políticas são interessantes, porque muito pouco se fala, ou não com a profundidade adequada, por exemplo, das rebeliões da Bahia. Mas no campo da História, o que me chamou mesmo a atenção foi a presença brasileira na África, não fazia ideia da importância dos retornados brasileiros na inclusão da África na globalização. Buscando confirmar estes fatos em fontes que não um romance, me deparei com este lindo artigo de um não menos lindo autor aqui. Vale a leitura.

Apesar de achar que o livro fica bem chato nas descrições detalhadas sobre as festas ou os rituais, especialmente com os muitos nomes que eu achei parecidos, certamente gostei de ter mais contato com toda a cultura daquele pedaço da África e mesmo deste pedaço da África aqui no Brasil.

O livro também aponta vários casos da famigerada “vista grossa” e do jeitinho brasileiro — que bem poderia ser africano, francês ou inglês. Que proíbe o tráfico, mas ele ainda acontece e lucra-se com ele. Que proíbe o padre de casar, mas ele casa. Que diz que proíbe a escravidão por motivos humanitários, mas é para ganhar mais dinheiro. Que impõe o livre comércio, que leva a democracia na base da porrada, que exige pagamento de juros e corte de investimentos. Que muitas leis e muitos discursos na verdade escondem um subtexto absolutamente oposto.

Do ponto de vista econômico, o livro me levou um pouco a pensar a geração de valor. Pelo que entendi até agora das minhas leituras em Economia, no comércio o valor que se gera é quando alguém trabalha para dar valor a alguma coisa que é possuída por outro. Por exemplo, eu pego um sujeito na rua e vendo o trabalho dele em forma de escravo, e enriqueço com isso. Fala-se do ciclo do açúcar, dou ouro e do café na História do Brasil, mas pouco destaque se dá ao ciclo do tráfico de escravos, que permeia todo esse processo. Quem tinha uma fazenda de cana no século XVII pode ter ficado pobre no XVIII, mas não quem vendia escravos. Muito do dinheiro que se gerou e se acumulou em África e na outra margem do Atlântico passou pela venda de pessoas, como hoje passa pela venda da força de trabalho. No ponto do livro em que me dei conta disso, de que muito provavelmente antepassados meus traficavam escravos (ou já foram escravos, ou tiveram escravos) senti um aperto no peito e na garganta, a vergonha atávica e a angústia de estar num mundo onde isso aconteceu e acontece (guardadas as devidas proporções). 

A própria Kehinde ganha muito dinheiro explorando o comércio de armas na África, provavelmente o mais lucrativo hoje, e o segundo mais lucrativo no século XIX. Mesmo seus princípios de não traficar escravos são flexibilizados quando ela tem de negociar com traficantes. E enriquece assim, além de com outras atividades. Apesar de haver algumas marcas da época atual na construção da personagem, que a fazem parecer “à frente de seu tempo”, quando ela se refere aos africanos que de lá não saíram como "selvagens", assume a posição de seus exploradores, os europeus, que aplicaram este conceito a todos os povos não-europeus que encontraram.

Dentre as muitas formas de racismo, injustiça e preconceito que aparecem no livro, destaco o Hilário. Ele enriquece, passa a tratar mal os empregados (pretos pobres), mas se humilhava frente aos brancos da sociedade burguesa. Este ponto é crucial, pois talvez seja o que menos tenha mudado. Por mais que se argumente que ainda há resquícios de escravidão no Brasil, ou que ela tenha assumido diversas formas disfarçadas, essas formas nada mais são do que isso, espectros, restos liofilizados do que era a escravidão no século XIX. No entanto, os tentáculos da escravidão permanecem e este especificamente talvez com poucas modificações. Quando vemos as reações raivosas sobre cotas raciais, é a casa grande se manifestando, como já foi tão bem colocado em vários espaços. Há uma impossibilidade, um impedimento, na expansão do que se vê como próximo, como kin em inglês, porque há abismos por todo o lado. E, como é muito mais fácil se solidarizar com o que nos é próximo, quanto menos próximos houver, menor o sentimento de solidariedade social. Fica impossível cobrar que alguém rico-senhor entenda que o país precisa reduzir a faixa de pobres-escravos. Por isso defendi o lema da primeira administração Dilma, “país rico é país sem pobreza”. Pode parecer óbvio, mas não é.

Os estratos sociais brasileiros continuam, a meu ver, subordinados ao enquadramento da lógica da escravidão. Mesmo com o desenvolvimento de uma classe média importante (não tão significativa quanto no G7, mas mesmo assim importante), a lógica dual das classes permanece; há somente senhores e escravos. No concurso para cidadão brasileiro, só há vagas para essas duas posições. O interessante é que muita gente — talvez quase todo mundo — tem duas matrículas, é senhor aqui e escravo ali. Parece uma fôrma cognitiva, um imprinting*, que anula qualquer outra maneira de se relacionar socialmente. Por qualquer lugar onde se vá estão os abismos. A médica humilha a recepcionista que humilha o cara da limpeza. Há uma transmissão desse modelo, talvez um pouco como reprodução de uma marca ancestral, uma espécie de vodum de cada família brasileira que foi assentado por todo o país. Impossível não fazer referência a casos de pessoas que sofreram algum tipo de abuso ou assédio, em especial na infância, e que reproduzem estes comportamentos mais tarde ou em outras situações de sua vida.

As referências políticas feitas pela Kehinde deixam o livro menos verossímil, com um tom didático meio novela de Manoel Carlos, com a diferença que com a Kehinde eu de fato aprendi alguma coisa. E, talvez por acontecer no período em que ela estava na África, há poucas menções ao processo político que levou à abolição da escravatura no Brasil. E é isso que eu acho que devemos estudar um pouco mais, pois envolve o entroncamento das complexidades sociais, políticas, culturais e econômicas do nosso país.

*imprinting – é um termo em inglês que se usa em biologia para designar uma impressão cognitiva que permanece. Por exemplo, assim que nasce um patinho, numa curta janela de tempo, o que quer que ele veja se mover durante aquele intervalo ele vai seguir a infância toda. Depois de fechada essa janela, fica o imprinting. É assim que ele segue a mãe. Se por acaso não houver mãe, e houver, digamos, um boneco se mexendo, é esse boneco que os patinhos vão seguir durante a infância.



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