Um Defeito de Cor é um livro grande, mas condensado. Condensa várias das
histórias possíveis que um escravo pode viver, seja na saga da personagem
principal ou nas veredas de outras personagens.
O livro é todo emocionante, desde o começo. A história de sua infância
na África, antes mesmo da captura para ser vendida como escrava mostra quão dura
e difícil a vida era lá naquela época, dando uma ideia de que ainda pode ser
assim, daquele mesmo jeito em alguns lugares. No entanto, em graus
diferentes, os núcleos opressivos ali colocados permanecem. Sucessivas derrotas
pela força, a morte dos parentes, o abandono dos pais e dos homens, Kehinde
sofre desde a infância as marcas de ser mulher, de ser africana.
Àquelas injustiças outras vão se somando, e se for comentar todas aqui,
o textão vai ficar insuportável. O livro me faz lembrar que a vida não é nada
justa, e que mesmo as pessoas, que são quem poderiam torná-la ao menos um pouco
mais justa, não o fazem.
Algumas descrições políticas são interessantes, porque muito pouco se
fala, ou não com a profundidade adequada, por exemplo, das rebeliões da Bahia.
Mas no campo da História, o que me chamou mesmo a atenção foi a presença
brasileira na África, não fazia ideia da importância dos retornados brasileiros
na inclusão da África na globalização. Buscando confirmar estes fatos em fontes
que não um romance, me deparei com este lindo artigo de um não menos lindo
autor aqui.
Vale a leitura.
Apesar de achar que o livro fica bem chato nas descrições detalhadas
sobre as festas ou os rituais, especialmente com os muitos nomes que eu achei
parecidos, certamente gostei de ter mais contato com toda a cultura daquele
pedaço da África e mesmo deste pedaço da África aqui no Brasil.
O livro também aponta vários casos da famigerada “vista grossa” e do
jeitinho brasileiro — que bem poderia ser africano, francês ou inglês. Que
proíbe o tráfico, mas ele ainda acontece e lucra-se com ele. Que proíbe o padre
de casar, mas ele casa. Que diz que proíbe a escravidão por motivos
humanitários, mas é para ganhar mais dinheiro. Que impõe o livre comércio, que
leva a democracia na base da porrada, que exige pagamento de juros e corte de
investimentos. Que muitas leis e muitos discursos na verdade escondem um
subtexto absolutamente oposto.
Do ponto de vista econômico, o livro me levou um pouco a pensar a
geração de valor. Pelo que entendi até agora das minhas leituras em Economia,
no comércio o valor que se gera é quando alguém trabalha para dar valor a
alguma coisa que é possuída por outro. Por exemplo, eu pego um sujeito na rua e
vendo o trabalho dele em forma de escravo, e enriqueço com isso. Fala-se do
ciclo do açúcar, dou ouro e do café na História do Brasil, mas pouco destaque
se dá ao ciclo do tráfico de escravos, que permeia todo esse processo. Quem
tinha uma fazenda de cana no século XVII pode ter ficado pobre no XVIII, mas
não quem vendia escravos. Muito do dinheiro que se gerou e se acumulou em
África e na outra margem do Atlântico passou pela venda de pessoas, como hoje
passa pela venda da força de trabalho. No ponto do livro em que me dei conta
disso, de que muito provavelmente antepassados meus traficavam escravos (ou já
foram escravos, ou tiveram escravos) senti um aperto no peito e na garganta, a
vergonha atávica e a angústia de estar num mundo onde isso aconteceu e acontece
(guardadas as devidas proporções).
A própria Kehinde ganha muito dinheiro explorando o comércio de armas na
África, provavelmente o mais lucrativo hoje, e o segundo mais lucrativo no
século XIX. Mesmo seus princípios de não traficar escravos são flexibilizados
quando ela tem de negociar com traficantes. E enriquece assim, além de com
outras atividades. Apesar de haver algumas marcas da época atual na construção
da personagem, que a fazem parecer “à frente de seu tempo”, quando ela se
refere aos africanos que de lá não saíram como "selvagens", assume a
posição de seus exploradores, os europeus, que aplicaram este conceito a todos
os povos não-europeus que encontraram.
Dentre as muitas formas de racismo, injustiça e preconceito que aparecem
no livro, destaco o Hilário. Ele enriquece, passa a tratar mal os empregados
(pretos pobres), mas se humilhava frente aos brancos da sociedade burguesa.
Este ponto é crucial, pois talvez seja o que menos tenha mudado. Por mais que
se argumente que ainda há resquícios de escravidão no Brasil, ou que ela tenha
assumido diversas formas disfarçadas, essas formas nada mais são do que isso,
espectros, restos liofilizados do que era a escravidão no século XIX. No
entanto, os tentáculos da escravidão permanecem e este especificamente talvez
com poucas modificações. Quando vemos as reações raivosas sobre cotas raciais,
é a casa grande se manifestando, como já foi tão bem colocado em vários
espaços. Há uma impossibilidade, um impedimento, na expansão do que se vê como
próximo, como kin em inglês, porque
há abismos por todo o lado. E, como é muito mais fácil se solidarizar com o que
nos é próximo, quanto menos próximos houver, menor o sentimento de
solidariedade social. Fica impossível cobrar que alguém rico-senhor entenda que
o país precisa reduzir a faixa de pobres-escravos. Por isso defendi o lema da
primeira administração Dilma, “país rico é país sem pobreza”. Pode parecer
óbvio, mas não é.
Os estratos sociais brasileiros continuam, a meu ver, subordinados ao
enquadramento da lógica da escravidão. Mesmo com o desenvolvimento de uma
classe média importante (não tão significativa quanto no G7, mas mesmo assim
importante), a lógica dual das classes permanece; há somente senhores e
escravos. No concurso para cidadão brasileiro, só há vagas para essas duas
posições. O interessante é que muita gente — talvez quase todo mundo — tem duas
matrículas, é senhor aqui e escravo ali. Parece uma fôrma cognitiva, um imprinting*, que anula qualquer outra maneira
de se relacionar socialmente. Por qualquer lugar onde se vá estão os abismos. A
médica humilha a recepcionista que humilha o cara da limpeza. Há uma
transmissão desse modelo, talvez um pouco como reprodução de uma marca
ancestral, uma espécie de vodum de cada família brasileira que
foi assentado por todo o país. Impossível não fazer referência a casos de
pessoas que sofreram algum tipo de abuso ou assédio, em especial na infância, e
que reproduzem estes comportamentos mais tarde ou em outras situações de sua
vida.
As referências políticas feitas pela Kehinde deixam o livro menos
verossímil, com um tom didático meio novela de Manoel Carlos, com a diferença
que com a Kehinde eu de fato aprendi alguma coisa. E, talvez por acontecer no
período em que ela estava na África, há poucas menções ao processo político que
levou à abolição da escravatura no Brasil. E é isso que eu acho que devemos
estudar um pouco mais, pois envolve o entroncamento das complexidades sociais,
políticas, culturais e econômicas do nosso país.
*imprinting – é um termo em
inglês que se usa em biologia para designar uma impressão cognitiva que permanece. Por
exemplo, assim que nasce um patinho, numa curta janela de tempo, o que quer que
ele veja se mover durante aquele intervalo ele vai seguir a infância toda. Depois
de fechada essa janela, fica o imprinting.
É assim que ele segue a mãe. Se por acaso não houver mãe, e houver, digamos, um
boneco se mexendo, é esse boneco que os patinhos vão seguir durante a infância.
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