Deixe-o
A leitura de “Retrato do Brasil”,
de Paulo Prado, provoca sensações muito contraditórias. Publicado na década de
1920 no Brasil, o livro traça um perfil do Brasil e do povo brasileiro a partir
de quatro pilares estruturantes: a luxúria, a cobiça, a tristeza e o romantismo,
cada um deles detalhado em um capítulo.
O retrato do Brasil, traçado por
Paulo Prado, é completamente negativo. Segundo o próprio, somos um país de
baixa formação moral e que nunca encontrou o seu real caminho e vocação, e que
portanto, é rapidamente afetado por uma degenerescência incorrigível.
Escrito a partir de um ponto de
vista profundamente preconceituoso e moralista, Paulo Prado tem um texto
odioso. Mas escreve muito bem, de maneira segura e fluida, sedutora até. A
primeira frase do livro apresenta a contradição inicial a partir da qual o
livro se desenrola: “Numa terra radiosa vive um povo triste.” Parafraseando o
autor para falar de sua própria obra poderíamos dizer: “Numa escrita magnífica
habita um pensamento escroto”.
É fácil odiar Paulo Prado.
Difícil mesmo é compreendê-lo. No entanto, ao devotarmos ao autor o mesmo ódio
que ele devota aos negros e aos índios, seguimos o mesmo caminho fácil utilizado
por ele nos seus argumentos: a lógica booleana.
A lógica booleana se estrutura em
oposições, em dicotomias que são variações do zero/um: certo/errado,
quente/frio, branco/preto, verde/maduro, etc. Essa lógica é frequentemente
utilizada no julgamento do autor, em especial no julgamento de ordem mais
moral.
A moralidade, advinda do uso da
lógica booleana, não admite matizes. Uma coisa está certa ou errada. De acordo
com essa lógica, ser branco é certo, ser preto é errado; ser heterossexual é
certo, ser gay é errado; ser puro é certo, ser mestiço é errado. Esse tipo de
pensamento, que possui a grande vantagem de fornecer respostas simples para
problemas complexos, pode ser muito tranquilizador. Ao negar os matizes e as
nuances dos eventos, parece fácil a aplicação de uma solução que resolva
eventos de alta complexidade. Para o problema “lotação dos presídios”, a
solução booleana/moral é “construir novos presídios”. Não se enxergam os
aspectos sociais, culturais e econômicos associados a esse fenômeno. Da mesma
forma, para o problema “roubos com faca”, a única solução possível parece ser a
“criminalização das facas”.
No entanto, negar as nuances
entre um extremo e outro, assim como negar diferentes pontos de vista sobre um
mesmo fenômeno só é possível até certo ponto. Há um momento em que essas coisas
aparecem. Em geral, quando as decisões simples e morais não podem ser tomadas,
porque a complexidade e as ressonâncias dessas decisões em outras esferas as
tornam impeditivas, o que resta aos moralistas é a certeza, falsa, de que a
decisão correta não está sendo tomada por má-vontade do decisor. Quando isto se
associa à impossibilidade da criação de novas soluções, que é própria da lógica
moral/booleana, o que se materializa no cotidiano é o ranço reclamão. “Os
políticos aí em Brasília, tudo roubando”, “É muita corrupção!”, “É um absurdo
isso que a gente tá vivendo”. Às vezes, o ranço reclamão vem acompanhado de um
caráter um pouco menos abstrato, com a solução moral e radical em seguida: “Tem
é que pegar cem anos de cadeia”, “Bandido bom é bandido morto!”, etc.
É basicamente disso que se trata
no livro de Paulo Prado e, em especial, no sucesso de Paulo Prado, à época. Ao
estabelecer a mestiçagem como fator inequívoco da degenerescência do povo
brasileiro, e ao constatar a inescapabilidade desta mestiçagem, o autor aponta
como únicas soluções possíveis, e ainda assim de forma muito tímida, no
Post-Scriptum de seu livro, a guerra ou a revolução. Soluções radicais,
totalitárias, quando ainda esse tipo de pensamento encontrava algum lastro não
apenas nas camadas populares (como ainda hoje), mas também nas esferas de
decisão (como não mais).
Pode ser que Paulo Prado tenha
conseguido escrever bem um livro com ideias ruins justamente porque sua
preocupação não era tampouco entender, sequer propor, mas sim pichar, detratar.
Ele pôde facilmente se dedicar às elucubrações estéticas num livro fácil, que
fala às pessoas exatamente aquilo que elas querem ouvir. Parece nisso tudo que
existe uma espécie de gozo muito peculiar na reclamação estéril, e que Paulo
Prado, sabiamente, o compartilha com seus leitores.
Ame-o
Se por um lado, viemos caminhando
no sentido de demonstrar porque ‘O Retrato do Brasil’ é um livro odiável sob
muitos aspectos, creio ser possível demonstrar, em oposição, que se trata de um
livro fascinante.
Em primeiro lugar, é importante
ressaltar a riqueza de se permitir uma experiência histórico-literária a partir
de um autor com visões de mundo diametralmente opostas às suas.
Não compartilho, em absoluto, das
visões preconceituosas e moralizantes do autor, que colocam o negro, o índio e
o mestiço brasileiro uma escadaria abaixo daquele patamar em que se encontra o
homem branco, e que se atém aos atributos morais de um povo como determinantes
indubitáveis de seu sucesso como civilização.
No entanto, Paulo Prado apresenta
conceitos e ideias muito interessantes para entender a formação do Brasil,
ainda que embotadas por uma densa camada de fuligem, que é o seu próprio
julgamento moral a respeito dos fatos históricos.
O capítulo ‘Cobiça’, no qual se
apresenta o desamor do colono às terras brasileiras e à lavoura, pode ser lido
em paralelo ao capítulo “Trabalho & Aventura”, de Raízes do Brasil (Sérgio
Buarque de Holanda). Em ‘Cobiça’, a apresentação da importância dos rios para
as bandeiras brasileiras, a desconstrução do senso comum de que as bandeiras
brasieiras partiram apenas do litoral de São Vicente em direção ao interior do
estado de São Paulo (houve bandeiras maranhenses, pernambucanas, baianas, etc)
e a explicação da fixação das pessoas nos rincões do país em função da
introdução do gado atestam que, ainda que seu senso de julgamento moral seja
extremamente controverso, as escolhas dos grandes temas feitas por Paulo Prado
para contar a história do Brasil são formidáveis e bem embasadas em registros
históricos.
Um desses registros históricos
aparece justamente em ‘Cobiça’ que é, possivelmente, o capítulo mais bem
estruturado de todo o livro. Nele, o autor demonstra o nível da ganância dos
colonos à época do Brasil colônia: “O próprio governador do Rio, Arthur de Sá e
Menezes, abandonando posição e deveres, parte para as descobertas, associa-se
com mineiros e atira-se como um aventureiro à procura do precioso metal: só
volta quando se julgou rico.” Sobre a cobiça, é ainda interessante perceber
como às vezes parece que mudamos muito pouco durante esse tempo todo. Sobre a
dificuldade de obtenção de sucesso na mineração, Paulo Prado afirma: “A
explicação dessa desproporção entre os resultados práticos obtidos e o esforço
descomunal despendido está na resistência passiva da natureza escondendo o ouro
na hostilidade do clima, da mata, do deserto, e na ignorância técnica dos
pioneiros. A fascinação da mina, porém, invadira o Brasil inteiro. A obsessão
foi contínua, espalhada por todas as classes, como uma loucura coletiva.” Esse
trecho se refere às excursões dos bandeirantes em busca de ouro no século XVII.
Mas poderia tranquilamente se referir à atividade mineradora em Serra Pelada,
na década de 1970.
Nos dois trechos citados
anteriormente, do capítulo ‘Cobiça’, os julgamentos morais não ficam tão
evidentes. Mas atentem para o trecho a seguir, do capitulo 'Luxúria', em que Paulo Prado, embasado em
documentos históricos da visitação do Santo Ofício à cidade de Salvador em
1591-92, enumera, em tom de denúnica, as supostas ‘perversões sexuais’ (na visão
do autor), ocorridas no início da colonização: “Sodomita, esse vigário de
Matoim, de 65 anos, cometendo atos desonestos com mais de quarenta pessoas, ou
esse outro clérigo, Frutuoso Álvares, ‘homem velho que já tem as barbas
brancas’, pederasta passivo, assim como o cônego Bartolomeu de Vasconcelos,
apaixonado pelos negros de Guiné; e o sodomita incestuoso Bastião de Aguiar,
menor de 16 anos, que se ajuntava com o irmão mais velho e com um bacharel em
artes, natural do Rio de Janeiro; [...] e o cristão novo Diogo Afonso,
encontrando-se com o seu cúmplice Fernão ‘pelos campos e ribeiras’; e João
Queixada, morador em casa do governador Dom Francisco de Sousa e que dormia em
Lisboa com os pajens do deão da Sé. Tríbade, essa famosa Felipa de Sousa, que
conhecia como uma Safo parisiense a arte de ‘falar muitos requebros e amores e
palavras lascivas melhor ainda do que se fora um rufião à sua barregan’ e que
conseguiu penetrar, para saciar o vício, num mosteiro de monjas; tríbade também
Luiza Roiz, que perseguia em sua fúria as negras da cidade.”
Esse trecho sintetiza como poucos
o real teor do livro de Paulo Prado e a postura que se tem ante ao mesmo é o
que pode colocar as pessoas em lados opostos em relação à obra. A primeira
reação é atentar para o julgamento moral que está sendo feito. Nisso, uma
postura aceitável é a de fechar o livro, rasgá-lo, queimá-lo e atirar as cinzas
ao vento. Este é certamente um trecho odiável, e quem norteia suas opiniões a
partir das opiniões do autor pode entender que este trecho presta um completo
desserviço à nação. No entanto, aqueles que se dispuserem a perceber o que o
livro tem a dizer para além da fuligem de moralidade que recobre ‘O Retrato do
Brasil’, não terão dúvidas em notar que Paulo Prado nos fornece um panorama
incrível da vida gay e das práticas homossexuais ocorridas no primeiro século
da colonização brasileira. Paulo Prado certamente teria engulhos ao pensar
nessa hipótese, mas a verdade é que ‘O Retrato do Brasil’ fornece à população
LGBT dados históricos muito relevantes à construção de sua identidade
histórica.
Por fim, o que não devemos deixar
de ter em mente é que esse é um livro sobre a história do Brasil, mas também
ele faz parte da História. Entendê-lo dentro de seu contexto histórico e saber
extrair dele o que há de melhor é uma tarefa árdua, complexa e delicada, mas
cuja empresa deve ser tentada. Dosar o ódio e o asco que se tem ao ler certas
passagens é heroico, mas conseguir lê-lo, contextualizá-lo e admirá-lo no que
possui de virtudes é prova de maturidade.
Não devemos devotar a Paulo Prado
o mesmo ódio que ele destilou à nossa gente. Ao optar entre se amamos ou se
odiamos Paulo Prado, caímos mais uma vez numa dicotomia booleana e
reducionista, tão utilizada por ele em ‘O Retrato do Brasil’. Sabemos, contudo,
que essas coisas, encalacradas na sua dualidade estrita, extinguem a criação de
soluções e não nos levam a lugar nenhum.
Para que possamos construir algo
a partir disso, é preciso que seja possível ao mesmo tempo amá-lo, odiá-lo e
escrutiná-lo sem paixão.
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