quinta-feira, 11 de junho de 2015

Outra História



 Durante a leitura do livro “Retrato do Brasil” de Paulo Prado, me veio uma lembrança do tempo em que eu morava em Teresina. Provavelmente por conta de alguns trechos sobre os bandeirantes. Nessa memória, recordei o caminho que pegava para ir ao colégio que passava por um prédio de esquina que ficava numa das principais avenidas da cidade. O prédio era uma escola (inclusive, lugar onde minha avó tinha dado aula durante alguns anos). Lembro que na parede branca do muro da escola tinha o nome do colégio em letra azul e em caixa alta. Chamava-se Unidade Escolar Domingos Jorge Velho. Só bem mais tarde fui saber quem esse homem tinha sido e que, dentre outras coisas, havia comandado a destruição do Quilombo dos Palmares (um dos mais emblemáticos refúgios do período de escravidão). Paulo Prado, homem branco, milionário, vinha de uma influente família paulista de cafeicultores. No livro transparece claramente a sua arrogância, seu racismo, machismo, elitismo, preconceito. Seu desgosto por se saber parte de um país formado por negros e índios. Seu remorso por ter falhado o lusitano, “tinha faltado a Portugal a verdadeira compreensão histórica e econômica da sua missão metropolitana”. Uma faceta interessante do livro é a sua grande honestidade ao retratar claramente a forma como aqueles que estão no seu lugar de fala pensaram e, infelizmente, ainda pensam o Brasil. De certa forma, existe uma relação relevante entre essa escola e as ideias de Paulo Prado.
O livro mostra que antes da colonização do Brasil, Portugal se deteriorava. Miséria, fraqueza, imoralidade reinavam. A sociedade vivia em íntima mistura com os mouros (povos do norte da África que praticavam o islamismo) e negros. Uns alforriados, outros escravizados. A escravidão minava o organismo social em toda a parte onde existiu. O horror e degradação do cativeiro fez desaparecer o heroico português do século XV (com todas as suas virtudes). O homem que colonizou o Brasil não era mais do que uma corruptela do branco europeu lusitano heroico de outrora.
Paira sob Paulo Prado o espectro de Conde Gobineau (teórico do racismo). O principal na sua tese racista é a concepção de que a escravidão estragava a sociedade. Não porque o ato em si fosse abominável, mas pelo fato dela permitir o contato do negro com o homem branco. Paulo Prado escreve: “em represália aos horrores da escravidão (o negro), perturbou e envenenou a formação da nacionalidade, não tanto pela mescla de seu sangue como pelo relaxamento dos costumes e pela dissolução do caráter social, de conseqüências ainda incalculáveis”.  Embora admita que as raças sejam iguais em capacidade, reafirma a questão dos problemas que a mestiçagem traz e levanta a possibilidade dessa mistura contribuir para a fraqueza, doença, vício, preguiça. Ao que parece o grande mal é ter o homem negro se misturado ao branco. Enquanto cita cientistas americanos que dizem que nos Estados Unidos o problema da mestiçagem não tem solução, a não ser que os negros sejam esterilizados, no Brasil esse mal é irremediável.
No capítulo sobre a luxúria, Prado escreve que os primeiros homens branco que vieram ao Brasil não eram lá os mais santos. Eram exilados, náufragos, desertores, criminosos. Só vinham ao Brasil por vontade própria o aventureiro miserável resolvido a tudo, o desesperado. Chegando ao Brasil, se entregaram aos prazeres da luxúria. Mas a culpa da depravação do português deveu-se ao clima, a falta de mulheres brancas, a sensualidade dos trópicos, as índias, que segundo ele eram de submissão fácil, e que segundo relatos “Procurava e importunava os homens brancos nas redes em que dormiam” e posteriormente “a passividade infantil da negra africana, que veio facilitar e desenvolver a superexcitação erótica em que vivia o conquistador e povoador”. Disso tudo se desenrola todos os males da nossa sociedade até hoje.
Quanto a Cobiça, Paulo Prado destaca a insaciável ganância e loucura pelo enriquecimento rápido que dominava os homens da época. Por toda parte o aventureiro corria atrás da prata do ouro e das pedras preciosas, que durante quase dois séculos não foram senão ilusões e desenganos. Só nas últimas dezenas do século XVII se desvendaram ao mundo as minas riquíssimas das Gerais que forneceram riquezas fantásticas. Porém o século XVIII, apesar de tanta riqueza, foi o século do martírio do Brasil justamente por causa ouro. Guerra Civil. Fome (por conta do abandono da cultura e da criação). Para Portugal, o enriquecimento com as minas brasileiras significou desperdício e esbanjamento. Nem o Estado melhorou e nem aumentou a fortuna pública, tudo por conta da estúpida administração portuguesa nesse século XVIII. Tanto que quando D. João V morreu, foi preciso pedir dinheiro emprestado para que enterro fosse pago. Quiseram viver sem trabalhar.
Prado conclui que, o homem sem a religiosidade, sem a cultura intelectual ou artística somado aos fatores da cobiça, que absorvia toda a energia psíquica do colono aventureiro (por ser uma paixão eternamente insatisfeita) mais a luxuria e a mestiçagem tomou o brasileiro pela tristeza que se estende por todo país.  A tristeza que leva ao enfraquecimento, a fadiga, insensibilidade, abatimento físico e moral e, ainda, a preguiça.
Dito isso, cabe refletir como devemos levar em conta o retrato de um país sem considerar ou menosprezar seu principal elemento formador. Não que a fala de Paulo Prado seja completamente nula, mas como Alberto da Costa e Silva disse em seu livro “Um rio chamado atlântico” não se pode estudar a história do Brasil sem estudar a história da África. O Brasil se formou na escravidão. “Foi o processo mais longo e mais importante da nossa história, de onde compramos o grosso dos nossos antepassados. Do outro lado do oceano é que principiam outras histórias com as quais compomos a história do brasileiro. Não numa África mítica, mas em cada uma das nações que tão diversamente nela vivem e possuem passado. Só conhecendo como foram, ao longo dos séculos em que tiveram parte de sua gente transplantada para as Américas, é que poderemos contar coerentemente por que e como no Brasil assumiram novas identidades e acabaram por se misturar entre si, de maneira quase impossível de desenredar”.
Em 1870 eram imensos os espaços vazios no conhecimento que a Europa tinha da África. O Europeu pensava a África como um continente vazio que pedia ocupação. Achavam-se detentores de uma missão civilizadora. Tinha a superstição da África como um lugar primitivo. Nada mais do que racismo e arrogância cultural. Tudo que não é padrão europeu é selvagem ou bárbaro. Os britânicos sob o pretexto de acabar com a ignomínia do comércio de negros, iniciou a transformação da África em colônia Europeia. Humilharam e depuseram chefes. Destruíram o monopólio comercial em que muitos fundavam o seu poder.
Sir Hugh Trevor-Hoper afirmou em 1963 não haver uma história da África, mas tão somente a história dos europeus no continente, porque o resto era escuridão, e a escuridão não é matéria de história. A mudança dessa visão começa a acontecer no século XX com a figura do administrador. O administrador colonial tinha, entre suas tarefas, a de produzir relatórios sobre as gentes de quem cobrava impostos. Muito desses funcionários imperiais deram-se a tarefa com zelo e alguns mais que zelo, paixão. Alguns desses funcionários já chegaram à África com curiosidade e erudição.  Para exercer com eficiência o ofício de agente político, tinha de aprender o idioma, conhecer crenças, familiarizar-se com estruturas sociais e os costumes dos povos que administravam. O que era exigido desses funcionários acabou por transformar alguns poucos em antropólogos, linguistas, geógrafos e historiadores. Por sua vez, o impacto da presença europeia e a resistência à ocupação colonial influenciou o interesse pelo próprio passado. Assim, embora sendo antiga a ampla bibliografia histórica sobre a África, a história da África é uma nova disciplina. Só há algumas décadas se incorporou ao currículo das universidades, tendo a historiografia africana como período áureo a partir da segunda Guerra Mundial.
                O ponto de vista em si de Paulo Prado é inócuo, qualquer indivíduo tem o direito de escrever sobre o que quiser. O verdadeiro problema é o lugar dessa fala. Paulo Prado representa uma poderosa estrutura de poder e a sua fala tem grande impacto. Renegar, diminuir, culpar e desumanizar o negro, o índio e o mestiço vai além do cruel. É criminoso. Da gênese desse tipo de pensamento surgem tragédias que tem o racismo, desigualdade e a segregação como pano de fundo. Desde a criminalização do porte de armas brancas e redução da maioridade penal aos vários casos como Amarildo, Cláudia, DG, Eduardo, mortos arbitrariamente pela polícia (porque eram pobres, negros ou favelados).
Na minha última visita a Teresina, ainda esse ano. Descobri que o colégio público Unidade Escolar Domingo Jorge Velho não existe mais. Decorrente de um projeto de lei, em 2007, a escola se transformou no Memorial Zumbi dos Palmares e hoje é um espaço de difusão e divulgação da cultura negra. O empoderamento proporcionado pela memória e a identidade provocam mudanças. Longe do ideal, mas ideias, posturas e pensamento conservadores de outros tempos já não se reproduzem tão facilmente hoje em dia. Não tenho resposta sobre qual será o futuro disso, mas me anima pensar que obras como a de Paulo Prado terão cada vez mais rejeição.
Reproduzo abaixo o último parágrafo do capítulo intitulado “Ser africano no Brasil dos séculos XVIII e XIX” do livro “Um rio chamado atlântico” de Alberto da Costa e Silva: “O Africano no Brasil, o livre, o liberto, mas, sobretudo o escravo, foi um elemento altamente civilizador, como já pensava um dos grandes políticos brasileiro do século XIX, Bernardo Pereira de Vasconcelos. Bernardo Pereira de Vasconcelos disse alto no Senado, em 1843, esta frase em tudo verdadeira:“ A África civiliza a América.” Eu a tenho na memória, ao voltar-me para o africano escravizado que vivia em terras brasileiras nos séculos XVIII ou XIX e ao perguntar-lhe como é que gostaria de ser lembrado por nós, brasileiros de hoje. Creio que gostaria que dele não esquecêssemos a criatividade com que se deu a uma terra que logo fez sua, ocupou com seu trabalho e encharcou de beleza. Seríamos não só injustos e ingratos, mas também não merecedores de seu exílio, de sua humilhação e de seu sofrimento, se olvidássemos o papel enorme e decisivo do escravo na construção do Brasil. Se alguém merece ser herói nacional deste país, este alguém é ele.”

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