Como a luz do sol de meio-dia
A ciência social crítica é quase um
palavrão em uma sociedade que prefere esconder seus maiores fantasmas. Jessé
nos presenteia com o livro “ A tolice da inteligência brasileira” onde desconstrói
tudo aquilo (e todos aqueles) que poucos cientistas sociais ousam fazer.
Exatamente por isso que o primeiro
olhar é de estranhamento. Apenas aos poucos compreendemos o cerne da questão
que ele nos provoca. Resumiria em uma frase, retirada do livro, a coisa mais
óbvia e ao mesmo tempo mais difícil de enxergarmos em no mundo: “As ideias só adquirem força prática na
realidade se estiverem ligadas a certos interesses especialmente econômicos e políticos”
(página 48).
Não conseguiria afirmar se concordo
com as teses do autor, mas, com toda certeza, passo a enxergar o mundo das ciências
sociais de outra maneira.
Se o autor consegue criticar até
Bourdier, me senti à vontade, na minha humilde posição de mestranda em ciências
sociais, de criticar o autor de forma geral, abaixo, e ao longo do meu texto.
Considero o maniqueísmo (esquerda x
direita/libera x marxismo/Estado x mercado) uma maneira quase ultrapassada de
enxergarmos as coisas. E essa é a minha maior crítica ao livro. Outras quatro críticas
gerais ao livro são: a) o excesso de repetições, quase que como forma de doutrinar
as hipóteses levantadas; b) os capítulos onde ele reescreve todas as ideias de
livros anteriores (do próprio autor); c) O livro é dividido em três partes, mas,
apesar das ideias serem repetidas, eles não têm uma ligação direta, ficam
soltos e a parte final é boa, mas solta. Não há uma conclusão. O livro termina
em “baixa”; e d) o título do livro é, como o autor também, um tanto quanto “grosseiro”
e dentro da lógica de um diálogo (e não estou falando do 1% mais rico) com
parte da sociedade “cega”, certas atitudes afastam quem poderia parar para
pensar. Claro que eu sei que essa maneira tem o seu propósito, mas sempre vou
defender a maneira pela qual consigamos nos escutar.
Jessé coloca de forma clara que o
objetivo do livro é articular as ideias-força que se tornam vida prática na
sociedade brasileira contemporânea.
De um a um o autor despe todos os
principais clássicos da sociologia brasileira. E com os clássicos, a base da
interpretação da sociedade brasileira.
A começar pelo patrimonialismo, que
é apontado pelo autor de ser empregado de maneira equivocada por Sergio Buarque
de Holanda e Raymundo Faoro, tendo como base o conceito de Weber, que define o
patrimonialismo só pudendo existir numa dominação racional-legal, que no Brasil
só começa a existir em meados do século XX. Acontece que o conceito de
patrimonialismo que Buarque e Faoro atentam tem relação com a falta de
distinção por parte dos líderes políticos entre o patrimônio público e o
privado e mesmo que concorde com o Jessé que o estado burocrático só começa no
Brasil a partir de Vargas, isso não impossibilita de usarmos o conceito para
falar da formação social-política do Brasil. Por outro lado, hei de concordar
quando, na página 92, o autor escreve que “a única e verdadeira função da tese
do patrimonialismo” seria criar o Estado enquanto culpado e que todos os
problemas sociais acontecem devido à corrupção supostamente estatal. Esse é o
ponto no meu ponto de vista, que devemos destacar na crítica do autor.
Além disso, toda a argumentação do
uso incorreto do conceito de patrimonialismo (e também do Homem Cordial), acarretaria
em abertura para caminhos liberais, já que o “mercado é virtuoso”.
O Homem Cordial de Sérgio Buarque e
Jeitinho Brasileiro de Roberto da Matta são para Jessé o que poderíamos chamar
de “culturalismo personalista”. Nesse ponto, Jessé acerta em cheio quando
indica que esse tipo de pensamento apenas determina a hierarquia de valores e a
estratificação social. Nos colocando como sociedades pré-modernas, com suposta
inferioridade perante as sociedades de do centro. E mais, o autor aponta que é
nessa teoria que se escondem as verdadeiras causas da desigualdade e do
privilégio injusto.
A parte II do livro começa com a
seguinte frase: “O economicismo é a crença explícita ou implícita de que o
comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos
econômicos”. A transformação socioeconômica no Brasil ocorrida a partir de
1930, resulta em uma concentração sem precedentes de renda, propriedade e
poder, escreve o autor na página 113. Tenho que discordar do termo “sem
precedentes”, já que as acumulações, desses 3 elementos, estão presentes desde
a colonização. A novidade é a classe média, que acompanha as novas funções do
mercado e faz a desigualdade aumentar ainda mais entre as classes.
Outro ponto que não sei se foi
percebido nos meus ilustres amigos do grupo é que, com medo de ter feito uma
leitura equivocada, achei que o autor, apesar de elogiar (em partes) Florestan
Fernandes, parece não dar a devida importância a questão racial, preferindo continuar
afirmando o “inimigo” é mercado/liberalismo (página 137).
A melhor contribuição de Jessé, nessa
parte, é por apontar e reforçar que a escravidão sempre foi a nossa maior
instituição e é essa base que temos que estudar. E provoca: “O que é ser gente?
”
Da parte III, destacaria a
discussão sobre as “redes de relacionamento”, “violência simbólica”, “ideologia
meritocrática”, “hierarquia moral” e “demonização” das sociedades periféricas
como reino da corrupção. Só na página 168, Jésse cita Marx e o que este chamava
de “ilusões objetivas”, que são as percepções constituídas para serem
superficiais e enganosas, mas que como fomos todos “socializados” dentro desses
padrões de percepção e pré-compreensão, tendemos a aceitar como tão naturais quanto
a luz do sol.
O início dessa institucionalização
foi no cristianismo, que só será substituído quando o Estado Moderno e a
ciência e seus especialistas passam a moldar as ideias do mundo. As ideias “vencedoras”
são as que pautam o que a sociedade é hoje. Na página 180, o autor cita
Durkheim, Kant, Descartes, Agostinho e Locke para apresentar o caminho que
levou a essa nova maneira de ver o sujeito e que tem na sua base o controle e a
disciplina (Foucault – Microfísica do Poder e Vigiar e Punir). Outro conceito
trazido pelo autor é de Charles Taylor e o “princípio da dignidade” que pressupõe
pelo menos a possibilidade de reconhecimento universal entre iguais. Assim
passamos a falar em cidadania, direitos e deveres (que Jessé crítica na página
186). Bourdier e o conceito de habitus,
objetivismo x subjetivismo. A instituição enquanto um caminho predeterminado.
Internalização de valores.
A última parte do livro foca no
Brasil e como tudo que fora abordado nos capítulos anteriores se traduzem
naquilo que o autor chama de crise atual. A sensibilidade na percepção do que
as sutilezas da “dominação que fazem com que alguns monopolizem todos os
privilégios enquanto outros são excluídos” foi para mim o ponto alto da
análise.
De uma forma geral, o desafio que o
autor se coloca em “tentar reconstruir as bases para uma teoria crítica de
modernização” foi alcançada. O livro, apesar de parecer ser para um público
abrangente, traz muitos conceitos e questões que se misturam e podem passar
despercebidas ao leitor comum. O que ficou fortemente marcado em mim com a
leitura do livro foi: o enfraquecimento do Estado em prol de uma pauta
liberal-conservadora (mercado virtuoso).
Por fim, não consegui desenvolver
no texto, mas quero trabalhar em conjunto no grupo, a questão da corrupção. Esse
tema que passa por quase todos os capítulos de forma direta e indireta, é
delicado porque apesar de concordar com o autor, não posso deixar de pensar que
esse discurso também pode ser bastante perigoso.
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