domingo, 8 de maio de 2016

Como a luz do sol de meio-dia

A ciência social crítica é quase um palavrão em uma sociedade que prefere esconder seus maiores fantasmas. Jessé nos presenteia com o livro “ A tolice da inteligência brasileira” onde desconstrói tudo aquilo (e todos aqueles) que poucos cientistas sociais ousam fazer.

Exatamente por isso que o primeiro olhar é de estranhamento. Apenas aos poucos compreendemos o cerne da questão que ele nos provoca. Resumiria em uma frase, retirada do livro, a coisa mais óbvia e ao mesmo tempo mais difícil de enxergarmos em no mundo: “As ideias só adquirem força prática na realidade se estiverem ligadas a certos interesses especialmente econômicos e políticos” (página 48).
Não conseguiria afirmar se concordo com as teses do autor, mas, com toda certeza, passo a enxergar o mundo das ciências sociais de outra maneira.   

Se o autor consegue criticar até Bourdier, me senti à vontade, na minha humilde posição de mestranda em ciências sociais, de criticar o autor de forma geral, abaixo, e ao longo do meu texto.

Considero o maniqueísmo (esquerda x direita/libera x marxismo/Estado x mercado) uma maneira quase ultrapassada de enxergarmos as coisas. E essa é a minha maior crítica ao livro. Outras quatro críticas gerais ao livro são: a) o excesso de repetições, quase que como forma de doutrinar as hipóteses levantadas; b) os capítulos onde ele reescreve todas as ideias de livros anteriores (do próprio autor); c) O livro é dividido em três partes, mas, apesar das ideias serem repetidas, eles não têm uma ligação direta, ficam soltos e a parte final é boa, mas solta. Não há uma conclusão. O livro termina em “baixa”; e d) o título do livro é, como o autor também, um tanto quanto “grosseiro” e dentro da lógica de um diálogo (e não estou falando do 1% mais rico) com parte da sociedade “cega”, certas atitudes afastam quem poderia parar para pensar. Claro que eu sei que essa maneira tem o seu propósito, mas sempre vou defender a maneira pela qual consigamos nos escutar.

Jessé coloca de forma clara que o objetivo do livro é articular as ideias-força que se tornam vida prática na sociedade brasileira contemporânea.

De um a um o autor despe todos os principais clássicos da sociologia brasileira. E com os clássicos, a base da interpretação da sociedade brasileira.

A começar pelo patrimonialismo, que é apontado pelo autor de ser empregado de maneira equivocada por Sergio Buarque de Holanda e Raymundo Faoro, tendo como base o conceito de Weber, que define o patrimonialismo só pudendo existir numa dominação racional-legal, que no Brasil só começa a existir em meados do século XX. Acontece que o conceito de patrimonialismo que Buarque e Faoro atentam tem relação com a falta de distinção por parte dos líderes políticos entre o patrimônio público e o privado e mesmo que concorde com o Jessé que o estado burocrático só começa no Brasil a partir de Vargas, isso não impossibilita de usarmos o conceito para falar da formação social-política do Brasil. Por outro lado, hei de concordar quando, na página 92, o autor escreve que “a única e verdadeira função da tese do patrimonialismo” seria criar o Estado enquanto culpado e que todos os problemas sociais acontecem devido à corrupção supostamente estatal. Esse é o ponto no meu ponto de vista, que devemos destacar na crítica do autor.

Além disso, toda a argumentação do uso incorreto do conceito de patrimonialismo (e também do Homem Cordial), acarretaria em abertura para caminhos liberais, já que o “mercado é virtuoso”.  
O Homem Cordial de Sérgio Buarque e Jeitinho Brasileiro de Roberto da Matta são para Jessé o que poderíamos chamar de “culturalismo personalista”. Nesse ponto, Jessé acerta em cheio quando indica que esse tipo de pensamento apenas determina a hierarquia de valores e a estratificação social. Nos colocando como sociedades pré-modernas, com suposta inferioridade perante as sociedades de do centro. E mais, o autor aponta que é nessa teoria que se escondem as verdadeiras causas da desigualdade e do privilégio injusto.

A parte II do livro começa com a seguinte frase: “O economicismo é a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos”. A transformação socioeconômica no Brasil ocorrida a partir de 1930, resulta em uma concentração sem precedentes de renda, propriedade e poder, escreve o autor na página 113. Tenho que discordar do termo “sem precedentes”, já que as acumulações, desses 3 elementos, estão presentes desde a colonização. A novidade é a classe média, que acompanha as novas funções do mercado e faz a desigualdade aumentar ainda mais entre as classes.

Outro ponto que não sei se foi percebido nos meus ilustres amigos do grupo é que, com medo de ter feito uma leitura equivocada, achei que o autor, apesar de elogiar (em partes) Florestan Fernandes, parece não dar a devida importância a questão racial, preferindo continuar afirmando o “inimigo” é mercado/liberalismo (página 137).

A melhor contribuição de Jessé, nessa parte, é por apontar e reforçar que a escravidão sempre foi a nossa maior instituição e é essa base que temos que estudar. E provoca: “O que é ser gente? ”
Da parte III, destacaria a discussão sobre as “redes de relacionamento”, “violência simbólica”, “ideologia meritocrática”, “hierarquia moral” e “demonização” das sociedades periféricas como reino da corrupção. Só na página 168, Jésse cita Marx e o que este chamava de “ilusões objetivas”, que são as percepções constituídas para serem superficiais e enganosas, mas que como fomos todos “socializados” dentro desses padrões de percepção e pré-compreensão, tendemos a aceitar como tão naturais quanto a luz do sol.

O início dessa institucionalização foi no cristianismo, que só será substituído quando o Estado Moderno e a ciência e seus especialistas passam a moldar as ideias do mundo. As ideias “vencedoras” são as que pautam o que a sociedade é hoje. Na página 180, o autor cita Durkheim, Kant, Descartes, Agostinho e Locke para apresentar o caminho que levou a essa nova maneira de ver o sujeito e que tem na sua base o controle e a disciplina (Foucault – Microfísica do Poder e Vigiar e Punir). Outro conceito trazido pelo autor é de Charles Taylor e o “princípio da dignidade” que pressupõe pelo menos a possibilidade de reconhecimento universal entre iguais. Assim passamos a falar em cidadania, direitos e deveres (que Jessé crítica na página 186). Bourdier e o conceito de habitus, objetivismo x subjetivismo. A instituição enquanto um caminho predeterminado. Internalização de valores.

A última parte do livro foca no Brasil e como tudo que fora abordado nos capítulos anteriores se traduzem naquilo que o autor chama de crise atual. A sensibilidade na percepção do que as sutilezas da “dominação que fazem com que alguns monopolizem todos os privilégios enquanto outros são excluídos” foi para mim o ponto alto da análise.

De uma forma geral, o desafio que o autor se coloca em “tentar reconstruir as bases para uma teoria crítica de modernização” foi alcançada. O livro, apesar de parecer ser para um público abrangente, traz muitos conceitos e questões que se misturam e podem passar despercebidas ao leitor comum. O que ficou fortemente marcado em mim com a leitura do livro foi: o enfraquecimento do Estado em prol de uma pauta liberal-conservadora (mercado virtuoso).


Por fim, não consegui desenvolver no texto, mas quero trabalhar em conjunto no grupo, a questão da corrupção. Esse tema que passa por quase todos os capítulos de forma direta e indireta, é delicado porque apesar de concordar com o autor, não posso deixar de pensar que esse discurso também pode ser bastante perigoso. 

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