sábado, 7 de maio de 2016

A Perpetuação de Uma Sociedade Excludente - Seus Mecanismos e Dispositivos


Aviso: o textão tá enorme. E não tem figura.

De forma geral, bem sobrevoando, o livro é muito mal escrito. Falhas graves de revisão, com alguns erros de concordância, e muitos de estilo mesmo, com períodos muito longos. Em alguns deles, ao chegar no meio da frase já não se sabe qual é o sujeito. E Jessé também levou o conceito anterior que eu tinha de “uso excessivo de aspas” a um nível completamente diferente. Desde a introdução vivi a ambiguidade de perceber um conteúdo interessantíssimo e absolutamente necessário, em uma escrita medíocre. 

Aliado a estes problemas de estilo, o tom afiado, por vezes frontalmente agressivo de Jessé me fez temer que seu livro, que carrega conceitos tão importantes, tenha seu espectro de leitores restrito aos que já concordam com eles. Ainda assim, vale a pena, pois, mesmo pregando para os convertidos, enriquece a argumentação com dados de ciência em articulação com conceitos da filosofia, além de questionar os “pilares da interpretação do Brasil enquanto tal”. Odeio “enquanto tal”. 

Terminando de ler o livro, concluí que ele poderia ter sido publicado apenas com a última parte, em que ele verdadeiramente se coloca de maneira clara. Os capítulos finais sintetizam muito bem os argumentos do resto do livro. Nos capítulos anteriores, no entanto, ele desenvolve suas referências teóricas e comenta os conceitos, próprios ou de outros autores. Achei as referências riquíssimas, assim como as ponderações que ele faz. 

Este livro funciona para mim como um grande exercício para não enxergar obras e autores como blocos, nem jogar tudo no lixo por causa de falhas importantes. A tarefa é conseguir pensar os conceitos, dados e opiniões contidos no livro sem se deixar contaminar pelo tom ácido e afiado, por vezes até pessoal, e pelo estilo ruim. Quem sabe um de nós se anima em refazer este livro, como um ghost writer não-autorizado a posteriori? Vou seguir um pouco nesta direção aqui, muito sinteticamente, então senta que lá vem textão. 

O primeiro ponto que ele menciona é que todas as ideias dominantes, desde conversas de botequim até salas de aula, passando pelas notícias veiculadas pela imprensa, são versões simplificadas de ideias produzidas por grandes pensadores. Em geral, grandes pensadores originários de países da OCDE, cujas ideias são às vezes decantadas, em maior ou menor grau, pelos pensadores daqui.  Pierre Bourdieu, citado várias vezes por Jessé (impossível não pensar no francês je sais – “eu sei”), em uma palestra editada no livro Os Usos Sociais da Ciência faz menção ao conceito de campo. No campo atuariam forças, conservadoras e transformadoras, no âmbito de um determinado saber. Dentro deste campo, cada ator teria um determinado peso, de acordo com seu capital (por exemplo científico ou econômico), que mediria seu, digamos, poder de influência. Este peso, em conjunto com a independência do campo em questão em relação a outros — no livro ele cita o campo da ciência como sendo relativamente independente — determinaria um grau de refração, ao qual ideias externas seriam submetidos ao encostarem no campo em questão. Este conceito se torna útil quando pensamos, por exemplo, na ínfima independência que economistas brasileiros de direita têm hoje ao interpretar ideias vindas de fora. Elas vêm praticamente sem nenhuma refração. Assim, Jessé aponta Sergio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre como simples replicadores, com baixa refração, de ideias culturalistas de pensadores vindo das nações “centrais”, o que poderíamos chamar de hoje de norte, ou de componentes da OCDE.  

Mas ele alivia um pouco as críticas a SBH e a GB, a meu ver, porque as principais obras destes autores foram escritas em um momento histórico anterior às grandes transformações do Brasil, segundo ele ocorridas com a industrialização promovida por Vargas. Esse ponto me fez pensar. Por que haveríamos de pensar que a identidade brasileira teria de permanecer a mesma desde a colônia? Entender o semeador, o caranguejo e o ladrilhador, a casa grande e a senzala é importante para construirmos a história de nosso povo, mas é muita miopia — ou má vontade — deixar de enxergar a grande mudança que ocorreu no país ao longo do século XX, especialmente depois do fim da República Velha. 

Sem fazê-lo claramente, Jessé mostra que o conceito de essência não serve. Eu tendo a concordar. As diferenças entre os povos apontados como bem-sucedidos (o curioso que quem decide quem é bem-sucedido é justamente o bem-sucedido), e outros ditos inferiores, não têm a ver com essência, mas com como essas imagens são construídas pelos poderosos, preocupados apenas em continuarem poderosos. Do racismo científico passou-se ao culturalismo, adaptando a teoria da inferioridade ao novo paradigma, que jánãoaceitava o racismo. Lembrei-me do homem-aranha. A aranha alterada por radioatividade picou Peter Parker e por isso ele ganhou os poderes do artrópode. Numa das montagens mais recentes, no entanto, a aranha não era alterada por radiação, mas sim modificada geneticamente em laboratório. A radioatividade e o risco nuclear já não têm o peso que tinham quando da guerra fria; muda-se então, a ficção. Os parâmetros teóricos, considerando que toda teoria é uma ficção, mudam junto com os tempos. Então o que caracteriza o brasileiro como inferior deixa de ser uma questão de raça para ser a herança cultural. 

Depois Jessé introduz outro ponto que acho importantíssimo e que vai aparecer em todo o livro, o da demonização do Estado, acoplado ao endeusamento do mercado. Sistematicamente o Estado é tido como principal ninho da corrupção, enquanto se ignora toda a corrupção do setor privado, inclusive quando esta se articula com o setor público. Ele afirma que, como as figuras presentes no poder político em geral não são muito diferentes dos detentores do poder econômico, ou com eles têm estreitas ligações, não se pode separar, de forma total, forças do Estado de forças do mercado.  

No fim dos anos 70, devido a crises financeiras e do petróleo, o modelo Keynesiano baseado em fortalecimento de salários (demanda) para aquecer a economia, parecia ter chegado a seu fim. A alternativa que se encontrou foi o modelo neoliberal, de fortalecimento da oferta, com redução de tributação dos detentores dos meios de produção, flexibilização de salários, enfraquecimento do poder de sindicatos e privatizações. Este modelo se espalhou pelo mundo com a ajuda de instituições como o FMI e o Banco Mundial, que impuseram medidas neoliberais como condição para renegociação das dívidas externas. Com o fim da União Soviética, contraponto ao modelo capitalista, o neoliberalismo se viu sem oposição e virou discurso hegemônico. No Brasil esse discurso pegou. A opinião corrente é que o Estado é grande demais e precisa diminuir e cortar despesas. O mercado se encarregará de abordar as grandes questões. Na verdade, como Jessé aponta, não há um só exemplo na História de um mercado ter resolvido questões centrais de um país. O modelo neoliberal não dá certo, não deu certo. Ele serve, desde sua aplicação prática a partir do Reagan-Thatcherismo, para aumentar as desigualdades. E, pasmem, o nível de taxação proposto por Reagan seria considerado praticamente socialdemocrata quando comparado ao atual, nos EUA. O setor financeiro está cada vez menos regulado e continua gerar crise atrás de crise, sem que se pense em como controlá-lo. Os bancos americanos que foram salvos em 2008, com dinheiro público, por serem “grandes demais para quebrar”, estão hoje ainda maiores. E ninguém fica escandalizado com isso. Como são os detentores do capital que dão as cartas na política, cortar, ou ao menos afrouxar os laços do dinheiro com a política parece ser uma solução para acabar com o verdadeiro sequestro da democracia perpetrado pelo poder econômico. O jogo político é viciado, e vivemos uma ilusão de democracia eleitoral, ou uma democracia relativa, por assim dizer. O controle do poder financeiro sobre os legisladores faz com que, na prática, os próprios bancos definam as regras. 

Como não é do interesse do capital mostrar diretamente a sua cara no poder, são criadas ou cooptadas figuras praticamente teatrais que servem para sorrir e implementar a agenda como ditada pelo mercado, como foi Fernando Henrique Cardoso no Brasil e Zaphod Beeblebrox na Galáxia, n’O Guia do Mochileiro das Galáxias. Somos levados a acreditar que o centro do poder está no Estado, quando na verdade os políticos eleitos, os legisladores, exercem algum poder em nome de ideias próprias apenas excepcionalmente, de forma em geralmente residual. 

Mesmo soluções inclusivas de esquerda têm sua miopia. Se todos forem incluídos no mercado de consumo no padrão euro-estadunidense, o que há para ser consumido não será suficiente. Claro que ainda há muita gente sem acesso a qualquer consumo, e, para estas pessoas, melhorar de vida significa consumir mais. Mas nos estratos sociais já inseridos no modelo econômico como consumidores, outro modelo de consumo dever ser pensado para se sustentar ao longo do tempo. O imperativo do crescimento tem um teto, de modo que o retorno ao Keynesianismo dos “Trinta Gloriosos”, caso implantado, esbarraria no limite do planeta.  

Seguindo suas críticas aos clássicos, Jessé, muito propriamente, aponta que o homem cordial não tem classe social. De fato, não incluir desigualdade social na “tipologia” brasileira é um engano grave. Todas as relações estão sob o campo de forças da desigualdade, que talvez seja a maior força social atuante no Brasil. Se por um lado isto passou em 1936, por outro aceitar uma cegueira destas hoje é imperdoável.  

Mais de uma vez no livro os canhões se voltam para a chamada pobreza do debate universitário brasileiro. Senti uma falta de fundamentação nessa crítica tão contundente. Se ele citou e escrutinou longamente pesquisas empíricas, poderia ter fundamentado melhor esta afirmação.  

Uma joia do livro é a perspicácia quase francesa do autor em detectar a legitimação sub-reptícia do modelo dominante. Jessé descreve muito bem, tanto no corpo do livro como, especialmente, em sua conclusão, a cooptação das classes médias pelo discurso conservador do mérito, do gigantismo do Estado e da pureza do mercado. Mesmo com inúmeras evidências em contrário, não há prédio de apartamentos no Rio de Janeiro que não tenha uma pessoa ou família pensando assim. Essa crença é capaz mesmo de resistir a contradições internas. Uma boa parte das pessoas que reclamam de o Estado ser grande, critica a falta de hospitais, de médicos, de professores, de escolas, de asfalto, de fiscalização, enfim, se queixa de o Estado ser pequeno. Um diálogo inspirado em Sócrates — que através de perguntas sucessivas mostrava as contradições do pensamento de seu interlocutor — faria ruir em cinco minutos essa perspectiva. Mas o tema corrupção funciona como argamassa para juntar essas ideias aparentemente contraditória. Toda a ineficiência do Estado fica justificada pela corrupção que o atinge, e somente a ele. A corrupção aparece como tema central, quando a “questão razoável é saber se o Estado é apropriado por uma pequena minoria privilegiada ou se pelo interesse da maioria. ” Mas acontece que o interesse da maioria corre o risco de ser apropriado pela pequena minoria privilegiada, ou talvez já seja. Tristemente vemos aqui reproduzida a noção de Trasímaco — um dos interlocutores de Sócrates — que dizia que a justiça era a “conveniência do mais forte”.  

Um ponto que Jessé aborda e que me é muito caro é o da entronização da ciência. A ciência carrega hoje a responsabilidade e a primazia da verdade. O modo como a ciência é produzida nada tem de isento, puro ou absoluto, ainda que este campo preserve alguma independência em relação a outros. Ainda assim, a ciência é manipulada, e não serve, por exemplo, para a Troika europeia entender que austeridade gera recessão, e não prosperidade. Serviu para o FMI parar de recomendar austeridade e privatizações, mas não é o FMI que manda na Grécia, mas sim o Banco Central Europeu, que não foi eleito. Temos aqui um exemplo em que o mercado não estrega a liberdade prometida lá pelo Von Mises, mas sim um afastamento da democracia.

Toda a evidência científica aponta que não necessariamente saúde mais cara é a melhor. Hospitais bem equipados, com máquinas de última geração, não garantem a saúde da população. Mas o senso comum quer hospital. Eu acredito que o senso comum pode mudar à medida que a saúde for melhorando pelo lado barato da coisa, que é a prevenção, e esta tem de ser estatal. Não cabe aqui fazer uma exposição longa sobre meu plano caso seja convidado para ser Ministro da Saúde em uma ditadura comunista-gayzista-feminazi-abortista-do-parto-humanizado, mas é suficiente saber que planos de saúde não podem criar uma estrutura de prevenção eficiente e eficaz simplesmente porque não é este seu objetivo como empresa. Ainda há coisas que não podem funcionar como mercadoria. 

Outra contribuição necessária de Jessé é a separação entre classe social e nível de renda. Muito se falou, no tempo de ouro do lulopetismo, na tal da “nova classe média”, ou simplesmente classe C. Evidenciando a âncora do economicismo, ele joga luz justamente para os fatores de dominação social, cultural e até, acrescento, cognitiva. Uma dominação eficaz porque invisível e ubíqua, onde o senso comum funciona como dispositivo de dominação e de produção e reprodução de privilégios injustos.  

Um ponto polêmico é o que toca raça e condição social. Jessé não fala longamente em racismo, mas deveria. Ele coloca que um foco excessivo no preconceito racial funciona como mais um aspecto da explicação economicista, escamoteando as verdadeiras razões da exclusão. E que a cor aparece principalmente quando o preto se distancia da ralé. Tendo a concordar com este ponto, mas quero ouvir o grupo a respeito disso, e arrisco prever que o textão do Igor deve mencionar este ponto.   


A parte III do livro começa logo com uma denúncia fundamental: a maneira fragmentada como compreendemos o capitalismo atualmente, creditando a diferenças de essência as discrepâncias entre os países do centro e da periferia. Se entendemos o povo suíço como superior ao povo de Zâmbia, falhamos em compreender que a riqueza de um está ligada à pobreza do outro. Companhias com sede na Suíça fazem mil manobrais legais para pagar baratíssimo pelos metais e pedras preciosos extraídos do país africano. Como a tributação é feita em cima dos valores dos metais extraídos no país da mina, o valor pago em impostos é também baixíssimo. A Zâmbia fica com crateras gigantescas em seu território, com a poluição inerente a toda atividade mineradora e um trocado, enquanto o dinheiro grosso, os empregos de alta qualificação ficam na sede suíça da mineradora. A Suíça, exemplo de desenvolvimento, não tem buracos de minas, mas tem o ouro. 

Os países ricos capitalistas conseguem dar bem-estar a seu povo por causa dos comunistas, trabalhistas ou socialdemocratas, que põem minimamente, e cada vez menos, é bem verdade, um freio nas ingerências do grande capital nas decisões políticas que afetam toda a população. A maior parte do que se elogia nos países ricos da Europa Ocidental deve-se, não ao capitalismo em si, mas àquilo se faz para contê-lo.  Onde o capitalismo corre sem freios é nos países pobres, onde o Estado é gerido quase que diretamente pelas oligarquias. Isto gera pobreza e concentração de renda. O capitalismo não é só o trem pontual que sai às 09:32 da Victoria Station com direção a Richmond Park, em Londres. É também o massacre de mineiros na África do Sul, o desmatamento da Amazônia para cultivo de soja, a falência de pequenos pescadores engolidos por regras de comércio na União Europeia que privilegiam as grandes corporações, é a morte do Rio Doce.

Ele segue para ressalvar a ilusão da meritocracia.  O cidadão médio da classe idem acredita que tudo o que conseguiu foi por esforço/mérito próprios. Não é bem assim. Todos os dias usamos os privilégios que temos para conseguir certas vantagens, mas somos levados a acreditar que o mérito é todo pessoal. Nenhum mérito é totalmente pessoal. Na verdade, estou até começando a rejeitar o conceito mesmo de pessoa, mas deve ser porque tenho lido muito Deleuze.

Uma pessoa rica que herda um grande negócio ou uma renda consegue perceber que não fez muito esforço sozinha, mas uma pessoa de classe média de fato trabalha muito, e talvez por isso não enxergue direito todo o uso que faz de seus privilégios. O pior lado disso é que, se eu estou aqui pelo meu próprio esforço, o outro é pobre por falta desse mesmo esforço. Esse enquadramento mental é a cara do novo capitalismo. Um empregado de uma indústria têxtil na Inglaterra em 1875 sabia que jamais teria a chance de enriquecer ou ser dono de uma multinacional, porque já tinha nascido pobre, e na época entendia-se melhor o papel de acidentes de nascimento na determinação da classe social. Um empregado de telemarketing hoje tem certeza de que se dedicar sua vida à empresa ele pode subir na vida. E se não consegue, a culpa é dele. O capitalismo, como item cultural, cria uma forma de percepção da vida. 

Jogando as razões do sucesso e fracasso para o plano individual, perde-se a perspectiva coletiva e social da luta de classes, e, portanto, os pobres e os trabalhadores ficam divididos, passando a competirem entre si, ao invés de se unirem para conseguir condições melhores de trabalho, como um mínimo de contraponto aos patrões. Todos têm de ser produtivos e dóceis.

Enquadrar-se nesse esquema vira uma questão de pertencimento à sociedade, a submissão como processo de subjetivação. No romance Submissão, Michel Houllebecq descreve a situação de um professor universitário que se submete a uma nova ordem cultural e política, entre outras razões, para poder se sentir parte de alguma coisa, para ter alguma dignidade. Em nossa sociedade um exemplo da dignidade da docilidade está na crença do voto e das eleições oficiais como único instrumento de democracia, e, portanto, inquestionável. Presos nesse esquema, não percebemos a imensa distorção representativa das casas legislativas em relação, por exemplo, às chamadas minorias. Não pensamos mesmo em questionar o sistema eleitoral, as coligações nas eleições proporcionais, a criação mecânica de partidos sem comprometimento ideológico, o sequestro do poder político pelo poder do dinheiro.  O mercado controlando o poder torna-se, então, na antítese da liberdade, por tornar o “jogo democrático” cada vez mais viciado e com cartas marcadas. Questionar esses parâmetros seria ser rebelde, portanto indigno, ou defender regras “não-democráticas”. Um pouco como Bernie Sanders foi chamado de comunista por defender saúde universal nos EUA.

Uma questão que então se coloca é como tornar esse enquadramento pré-reflexivo algo refletido e, logo, questionável. Estamos condicionados a acreditar que tudo que entra na dinâmica de mercado é para o bem.  Se fosse assim, haveria muito mais pesquisas de tratamentos de tuberculose ou Doença de Chagas que para disfunção erétil, por exemplo. E não haveria todo o contingente das chamadas “doenças negligenciadas”. A eficácia desse sistema pré-reflexivo está não em livros sobre moral ou ética capitalista, mas sim presente ubiquamente de forma rizomática, capilar, na institucionalidade silenciosa e invisível de seus componentes. O princípio da dignidade e a sacralização do trabalho estão tão presentes e tão invisíveis que nem pensamos em questionar sua validade. A dignidade e o trabalho estão intimamente ligados ao princípio capitalista da necessidade do crescimento eterno da produção. As máquinas não podem parar. Jamais. E para sustentar isso, todo o consumo tem de sempre crescer. A miopia do lucro hoje é a cegueira para os limites do planeta amanhã. Esta reflexão me leva ao início do livro do Jorge Caldeira, Nem Céu Nem Inferno, onde ele coloca, na descrição do Padre Léry, o encontro entre a relação comunal e próxima do índio com a terra e seus produtos, com a perspectiva exploratória e predatória do europeu, que extraía da terra à exaustão para acumular, enquanto o índio extraía o que precisava, e contava que a terra sempre estaria ali para prover as gerações seguintes.

O Estado mínimo é ruim para o próprio capitalismo.  Por exemplo, a diminuição do Estado gera menos investimentos em pesquisas. Como aponta Joseph Stiglitz no excelente The Price of Inequality, todas as grandes inovações — mesmo privadas — têm seu começo em uma pesquisa de base não vinculada imediatamente ao lucro, mas financiada com dinheiro público. Uma empresa privada vai pesquisar somente aquilo que pode dar lucro mais imediatamente, e cada vez mais isso tem sido manobras financeiras, e não inovações na produção per se. Mesmo as pessoas que poderiam usar sua capacidade criativa para iniciativas de promoção do bem comum estão se voltando para desenvolver operações financeiras para gerar mais lucro para empresas e pessoas que já são ricas.

Jessé aponta o esquema cognitivo de perpetuação da pobreza, ao comentar que capacidade de concentração e valorização do futuro em relação ao presente são valores que simplesmente não ocorrem nas camadas mais pobres e excluídas. Nosso enquadramento mental de responsabilização do indivíduo e de negação da luta de classes, e com ela a rejeição a qualquer mecanismo estatal de mitigação da desigualdade e da exclusão social funcionam girando o já poderoso motor de perpetuação da pobreza. Por exemplo, na questão da proliferação do mosquito, o cidadão é quem deve cuidar de seu quintal e de suas plantas para evitar produzir criadouros de Ædis ægypti. Sem qualquer dúvida o engajamento individual é muito importante em qualquer sociedade. Mas não podemos nos furtar a debater a questão da invasão de terras de mata, o crescimento desordenado das cidades, da falta de cobertura de rede de esgoto, água encanada e escoamento de águas pluviais. Ou na crise hídrica, quando muito se orientou o consumidor individual residencial a economizar água, mas pouco se falou sobre os grandes consumidores, como a agricultura, a pecuária e a indústria.

Nesse esquema, o excluído do consumo e da sociedade é incluído como músculo, como força de trabalho braçal. Conversando com um jovem universitário morador da zona oeste, ele mencionou o exemplo de sua família. Uma de suas irmãs, que trabalhava muito fora e estudava pouco, tem um filho que é considerado burro, que não se interessa pelas atividades culturais ou escolares, nem por leitura. Já outra irmã, mais nova, que conseguiu estudar para ser professora, tem uma filha considerada “inteligente”, pois já percebe, desde tenra idade, capacidade de concentração e desempenho escolar como valores. Penso também no meu professor de pilates, que vem de muito longe e passa horas no ônibus. Perguntei se ele conseguia ler no ônibus, como uma maneira de aproveitar o tempo para estudar alguma coisa, e ele disse que não, porque dorme. Claro, acorda muito cedo e vai dormir tarde, porque precisa trabalhar muito para ter um mínimo de dignidade. Ora, não  é possível eu achar que o mérito será meu se, um dia, formos ambos fazer uma prova;  eu, acordando 07:00 tendo ido dormir às 23:00, tomando café da manhã lindamente com frutas, grãos e iogurte, e pegando um metrô por 10 min no contrafluxo. Ele, acordando às 04:00, tendo ido dormir à meia noite, tomando um café com pão correndo para passar uma hora e meia em um ônibus cheio e desconfortável. Todo o sistema favorece os já favorecidos. Se não entendemos a perversidade deste sistema, não faremos nada para modificá-lo, e todos pagarão o preço.

A parte final do livro, a conclusão, é, como já disse, a melhor. Sem o compromisso de se justificar ou comprovar, temos acesso ao pensamento de Jessé e a suas opiniões sobre questões que estamos vivendo neste momento. Quando fala das manifestações, no entanto, senti falta de um comentário especial sobre a questão da violência policial, que foi, na minha opinião, um ponto importante de virada para a multiplicação e crescimento delas. A polícia funcionando como mais um ator perverso desse sistema de exclusão e de enquadramento social.

Se o capitalismo em sua forma perversa e selvagem se coloca em curso no Brasil, com seus formatos de legitimação incorporados dessa maneira, como resistir? O mecanismo de greve, inclusive já enquadrado em uma lei, parece não ser mais suficiente como pressão dos trabalhadores, já que estes se encontram divididos em suas bases, terceirizados, precarizados e os sindicatos com pouco ou nenhum poder. O que tem surgido é a ocupação como forma de atuação política. De aproximação do cidadão com o exercício direto de sua cidadania, dada a falência do voto como instrumento pleno de representação do poder. Em vez de pregar a já fracassada “conscientização das massas”, talvez a ocupação pelo contato direto, na pele com os dispositivos (aqui no sentido habitual da palavra, não no sentido Foucaultiano) e mecanismos possa suscitar no povo a percepção de que é possível gerar mais democracia e mais direitos.

Faltou também uma crítica mais contundente aos erros do lulopetismo em evitar mexer mais consistentemente na base do sistema excludente, as reflexões que se seguiriam poderiam ser interessantes para um livro desse porte.  O capítulo final, sobre o golpismo de ontem e hoje é muito importante e reforça um dos argumentos centrais de todo o livro o da cortina de fumaça da corrupção para esconder os verdadeiros problemas do Brasil, inclusive para a economia, que é a exclusão social e a desigualdade. E como os poderosos vão sempre atuar em prol de si mesmo para manter seus privilégios em uma sociedade excludente.

Se se pode chamar de tolice a atitude das classes médias em ressoar o discurso do mérito, da dignidade e da corrupção como cancro exclusivo do Estado, é possível chamar de míope a visão das classes mais ricas que produzem esses discursos, pois a permanência da desigualdade e da exclusão social é muito mais prejudicial à economia, e portanto ao seu próprio enriquecimento, do que os tímidos programas de mitigação da miséria e políticas inclusivas até agora em aplicação no Brasil.

Finalizando, apesar de erros mais materiais do que de conteúdo, Jessé escreveu um livro necessário por jogar luz sobre mecanismos e dispositivos perversos, que perpetuam uma sociedade excludente míope em alguns pontos e francamente cega em outros, pois não percebe que a inclusão dos mais necessitados, a extinção da miséria e da pobreza beneficia não só a estes, mas a todos.

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