“O privilégio da servidão”, de
Ricardo Antunes, é um livro difícil. Suas mais de 300 páginas se arrastam de
maneira lenta. A proposta é boa: contar a história recente do trabalho no
Brasil, apontando seus principais tensionamentos e conflitos na nossa realidade
hoje. O modo de fazer isso, contudo, ainda que bem intencionado, funcionou
apenas em parte. O livro é construído como uma sequência de capítulos que foram
escritos de maneira independente, e que foram sendo publicados em periódicos e
congressos aqui e ali.
A tentativa do autor (e de alguns
coautores que surgem ao longos capítulos) de criar a ‘proposta livro’,
encadeando os capítulos e alterando neles algum texto, gerou antes um amálgama
no qual se permanece enxergando cada uma das partes que o compõem do que um
todo coeso. Esse problema estrutural se acentua do meio para o final, em que os
eventos narrados estão muito próximos do momento da escrita. Dessa maneira, nos
últimos capítulos, estamos sempre ‘saltando’ aqui e ali na temporalidade, sem
saber exatamente o tempo em que o texto é escrito, ou, ainda pior: sabendo, e
vendo que o desenho proposto para o então presente não se configurou no futuro,
gerando uma espécie de futuro do pretérito que é a um só tempo impreciso e
enfadonho.
Deixemos de lado, por ora, os
defeitos, e falemos sobre o livro em si. Ricardo Antunes nos apresenta o
apocalipse do mundo do trabalho e, em última instância, do capitalismo em si,
entendendo-se aí o apocalipse não como fim, mas como tragédia. O autor nos
apresenta como o capitalismo no mundo cruza o modelo fordista em direção ao
modelo toyotista, flexibilizando as relações de trabalho, e dilacerando os
vínculos / contratos trabalhistas. A história é contada de um ponto de vista
global, mas apresenta o caso brasileiro em sua singularidade, destacando suas
idiossincrasias em relação ao modo como as lutas operárias aqui se
estabeleceram, e de como o sindicalismo, em suas mais variadas vertentes, veio
operando as relações e as lutas entre os trabalhadores e as empresas ao longo
do tempo no Brasil (passando, naturalmente, pela ascensão de um líder sindical
ao comando do país).
É curioso notar como essa
passagem do fordismo ao toyotismo é colocada pelo autor, que sempre o faz a partir
do ponto de vista dos trabalhadores. Estes, apesar de sua história de luta
organizada há pelo menos dois séculos, acabaram sempre sendo impelidos, ao
longo da história, a se submeter à lógica do capital.
A temática da transição do modelo
fordista ao toyotista não me é estranha. Sou engenheiro de produção, com
mestrado e doutorado na mesma área. Considerando o tempo para obtenção de cada
um desses diplomas, totalizo dez anos de exposição quase ininterrupta a esses
assuntos. Contudo, em todo esse tempo, raras foram as vezes em que foi
apresentado a mim, na esfera acadêmica, o outro lado dos fatos. A engenharia de
produção, durante todo este tempo, sempre (ou quase sempre) me apresentou o
lado patronal dessa história. Repito: em dez anos, nas mais sofisticadas
esferas de discussão sobre o assunto, foram muito raras as vezes em que esse
tema se apresentou do ponto de vista dos trabalhadores (acho que tive um único
professor, já no doutorado, que colocou esta abordagem).
Durante minha formação, os
livros-texto sobre o assunto não apresentaram discussões: trouxeram as suas
(supostas) verdades. A maior parte deles são traduções de um conhecimento
produzido na metrópole, os EUA. Sempre colocados como ‘gurus’, ‘papas’ ou
‘bíblias’, os livros conhecidos por seus sobrenomes não fazem mais do que
apresentar as mesmas informações, com uma leve variação de escrita e ali. São
eles: Slack, Kotler, Kaplan & Norton, Mintzberg, etc. Para não dizer que
não falei da produção nacional, coloque-se nesta conta Chiavenato, possivelmente
o autor mais vendido de livros técnicos em Administração no Brasil e que muito
provavelmente deve ter uma equipe grande de redatores ou ‘ghost writers’
que fazem a franquia Chiavenato crescer no país.
Ainda que eu citasse outros
autores, existe uma verdade deste ‘conhecimento’ que não se altera. Está lá
sempre o mesmo ponto de vista, no qual o ‘engenheiro de produção’ ou o
‘administrador’ é sempre convocado a resolver problemas e desenvolver soluções
para as empresas. Esta verdade ignora que, salvo raras exceções (nas quais esse
profissionais são efetivamente os donos dos meios de produção) na maior parte
das vezes esses profissionais também são empregados das corporações,
trabalhadores a colocar sua força de trabalho a serviço do capital.
Esse mesmo ponto de vista
martelado na minha cabeça por dez anos (repito: dez anos!) é capaz de produzir
uma verdade. Seria muito mais fácil para mim, evidentemente, aceitar essa
verdade e reproduzi-la, em vez de questioná-la em seus métodos, suas intenções
e seus porquês. Contudo, sorte: não me tornei escravo dessas informações. Sou,
em última análise, como alguém que foi exposto por dez anos a toda a sorte de
variedade midiática de produção de verdades (sempre a mesma verdade), tais como
Jornal Nacional, Jornal O Globo, Folha de São Paulo, Estadão e Valor Econômico
e que, a despeito da defenestração diuturna do PT por esse oligopólio
midiático, chega lá na urna e, tchã-rã, dedinho no 13.
É curiosa essa força do PT,
partido que nasce do trabalho e da confrontação do trabalho ao capital e que,
malgrado toda a articulação política que tenha feito durante seus anos de
governo, foi achincalhado por mais de cinco anos TODOS OS DIAS e está aí,
cotadíssimo pela população em uma futura eleição presidencial, ainda que a XP afirme
que as bolsas vão cair muito e que vai ser muito ruim para a economia, e que o
William Bonner faça uma cara muito séria dizendo que ‘a operação Lava-Jato
(...)’ qualquer coisa, e que o editorial do jornal que falava em uma escolha
muito difícil fale agora na construção de uma terceira via. As pessoas parecem
querer de volta o PT.
Essa discussão sobre o PT, e
sobre seu retorno à cena política brasileira apesar de sua diminuição recente
em termos de quantidade de políticos eleitos (tanto no Executivo como no
Legislativo), é importante por dois motivos.
Primeiro, porque o autor de ‘O
privilégio da servidão’ parece não reconhecer a imensa mudança que se deu nos
governos do PT em relação aos governos anteriores, de direita ou
centro-direita. Entendo sua posição hipercrítica em relação aos governos do PT
não terem alterado a lógica, o modus operandi, da produção capitalista.
Mas todas as conquistas desses quatorze anos de governo petista para a
população brasileira ou não são apresentadas ou são apresentadas de maneira
muito diminuída.
Tomemos como exemplo a política
de valorização real do salário-mínimo. Os governos do PT foram o primeiro
governo em muito tempo que implementaram uma política de valorização do
salário-mínimo no Brasil. Ainda assim, Ricardo Antunes: “Por outro lado.
permanecia aviltante o salário-mínimo brasileiro. Dilma, em seu primeiro ano de
mandato, 2011, foi taxativa em manter a proposta de 545 reais, demonstrando que
sua política de combate à fome se mantinha no campo do puro assistencialismo,
sendo incapaz de tocar no lucro do grande capital, do qual o governo Lula era
servo exemplar. (...) [O governo do PT] implementou uma política social
assistencialista, associada a uma pequena valorização do salário-mínimo.” O
salário-mínimo em 2016, após os sucessivos aumentos reais do governo Dilma
Rousseff durante a condução de seu mandato duramente interrompido, estava em
880 reais, sofrendo valorização real no período. Por que não citar os aumentos
sucessivos do salário-mínimo, com valorização real em todos os anos seguintes
do governo Dilma, citando apenas o momento de estabilidade deste valor, no
primeiro ano de seu mandato? Por que não citou que o governo Dilma transformou
o aumento real do salário mínimo em seus aspectos estruturais, fazendo com que
o mesmo deixasse de ser concedido via Medida Provisória e passasse a ser
concedido através de Lei?
Segue o autor, analisando o golpe
de 2016: “Mas é preciso enfatizar que a recusa e a denúncia do golpe – uma
vez que não há, até o presente, evidência clara de crime cometido por Dilma em
seu atual mandato – não podem significar aquiescência com a tragédia do PT no
poder, em todas as suas dimensões.” Algumas páginas adiante, Ricardo
Antunes coloca outra frase enfática na mesma direção, ao afirmar, sobre as
jornadas de junho de 2013: “A realidade brasileira começava então a ser
desnudada, em profundidade e, com ela, o fracasso social e político dos
governos do PT.”
É preciso, nesse caso, ponderar
algumas coisas. Ricardo Antunes tem suas justificativas para ‘bater’ nos
governos do PT. Uma delas é que ele tem razão ao afirmar que os governos
petistas não alteraram estruturalmente o sistema produtivo no Brasil. Não
alteraram mesmo, e, olhando pelo retrovisor, não consigo vislumbrar essa
alteração estrutural como uma possibilidade. A outra razão é que Ricardo
Antunes ocupa o lugar da intelectualidade. É seu papel jogar as lutas e as
discussões sempre mais à frente, em direção às utopias. O mundo real, que não
vai mesmo alcançá-las, será sempre capaz de ir mais longe quanto mais longe
forem os projetos e os sonhos. É muito diferente do lugar de quem entra no jogo
político e precisa fazer as coisas acontecerem. Cada um tem, bem demarcado, o
seu papel.
A mim, em particular, tem cansado
muito esse papel de uma intelectualidade que pensa a política brasileira como
um jogo em que uma revolução é sempre possível. Não que ela não seja. Pode ser,
a verdade é que ninguém sabe. Lembro que logo após as jornadas de 2013, o que
não faltou foram análises e comentários políticos de um monte de gente
(intelectuais ou não) que se debruçavam sobre os fatos. Todo mundo só viu as
condições de acontecimento do fenômeno quando o fenômeno, ele mesmo, já tinha
acontecido.
O fato é que eu também quero
acreditar na revolução mas, enquanto isso, as pessoas vivem. E se debatem com
seus salários, que são pequenos. E, por isso, a política de valorização do
salário-mínimo é importante enquanto o jogo acontece. Enquanto a revolução não
acontece as pessoas têm contas pra pagar e uma vida para viver. Não faço aqui
nenhuma apologia de um individualismo que passe ao largo das lutas coletivas
(ao contrário, na verdade). Mas quero reforçar a importância do papel que os
governos têm na vida das pessoas na duração do hoje, do agora. Nesse sentido,
parece bastante infantil que um livro publicado em 2020 (e, cujos capítulos,
ainda que falem de um tempo presente que já passou, foram revisados e compõem
um todo publicado em 2020), fale de “tragédia do PT no poder, em todas as
suas dimensões” e de “fracasso social e político dos governos do PT”.
Ricardo Antunes não vê o tamanho do problema que temos hoje?
Portanto, o que me incomoda mesmo
é a ‘autocrítica do outro’. É fácil falar mal do PT, um partido que governou o
Brasil por 14 anos. Mas é preciso reconhecer que, apesar de todas as porradas
que levou, o partido está aí na briga das próximas eleições, com recorde de
registro de filiações. Segue sendo o maior partido político da América Latina e
permanece como um polo aglutinador da política à esquerda no Brasil e no mundo.
A luta hoje é contra o fascismo e mesmo o PSOL já conseguiu perceber isso,
cogitando uma aliança com o PT para 2022. Ricardo Antunes compra um discurso
‘purista’ de ‘ética na política’ e ‘contra a corrupção’ que, no frigir dos ovos,
acaba por dar a volta em 360º e se irmana aos discursos da antipolítica e do
obscurantismo lava-jatista. Respeito sua posição de intelectual, mas penso não
haver clima para alimentar nenhum tipo de antipetismo no Brasil.
Nesse sentido, e considerando as possibilidades
de ‘autocrítica do outro’, é importante mencionar outros problemas que o texto
apresenta em relação às análises políticas mais recentes (especialmente sobre
as jornadas de junho de 2013 e sobre os governos do PT).
É evidente que o autor olha para
o mundo e o julga a partir de suas próprias lentes. Seu foco de estudo é o
mundo do trabalho e todas as suas análises partem desse eixo de pensamento.
Contudo, dada a complexidade dos problemas sociopolíticos apresentados, é
possível notar uma espécie de ‘cegueira seletiva’ do autor, pensando e
‘resolvendo’ o mundo sempre através deste prisma. Dois aspectos dessa cegueira
seletiva saltam aos olhos.
O primeiro deles tem a ver com a
discussão sobre as identidades. Verdade seja dita, Ricardo Antunes coloca essa
questão de que os sindicatos e as lutas das classes trabalhadores devem abarcar
as questões de gênero, de raça/etnia, de migração, etc. Contudo, todas as vezes
que o autor menciona esse ponto, sinto como se ele quisesse subjugar essa
discussão identitária ao mundo do trabalho. É como se ali houvesse uma lacuna
de pensamento, que não é capaz de reconhecer que as lutas identitárias pudessem
também ter protagonismo nas lutas anticapitalistas. É como se as identidades
fossem uma espécie de ‘apêndice’ das lutas de classe e que só possuíssem
legitimidade quando subjugadas a ela. Essa cegueira seletiva, que não reconhece
as potências legítimas que não perpassam diretamente o mundo do trabalho, faz
com que, por exemplo, um dos textos mais citados pelo autor seja “Racismo e
sindicalismo”, de Jair Batista da Silva, mas que a discussão sobre o racismo no
trabalho não apareça de maneira estruturada sequer uma vez. Ou seja, Antunes
leu ‘racismo e sindicalismo’, mas só apreendeu ‘sindicalismo’, não conseguindo
manejar e/ou problematizar o conceito de ‘racismo’ em nenhum momento do texto.
Outra coisa: o termo ‘transformismo’ foi usada reiteradas vezes, em tom jocoso
para se referir ao PT. O uso do termo pelo autor está referendado por uma
leitura de Maquiavel, que propõe a utilização desse termo quando da conversão
de um partido político de esquerda em um suposto “Partido da Ordem”. Mas o que
Ricardo Antunes ignora é que o termo ‘transformismo’ tem outro significado,
remetendo à prática de ‘usar roupas de mulher’ e de ‘se travestir’, quando as
identidades trans estavam menos assentadas no imaginário político LGBTQIA+. O
termo ‘transformista’, muito popular na década de 1980, se referia a essa
pessoa, então ‘um homem vestido de mulher’ para uma sociedade que não aceitava
a existência de pessoas trans, e que hoje, uma vez em desuso, encontra
aproximações possíveis nas estéticas e práticas ‘crossdresser’ e ‘drag
queen’. Portanto, quando utiliza o termo ‘transformismo’ num tom jocoso, o
que temos são duas possibilidades. Ou Ricardo Antunes conhece o significado do
termo para além do que postula Maquiavel e, nesse caso, ao utilizá-lo, está
sendo deliberadamente homofóbico, ou não conhece e, nesse caso, mostra que não
está atento ao que circula de informação para além da sua própria bolha
heterocisnormativa, ainda que de esquerda.
A outra cegueira seletiva do
autor diz respeito às políticas públicas. Ao analisar os governos do PT e as
jornadas de junho, sua análise olha apenas para aspectos econômicos, e que
tenham vinculação direta ao mundo do trabalho. Mas essas informações não são
suficientes para explicar nem as jornadas de junho nem os tempos de alta
popularidade dos governos do PT. Ricardo Antunes realiza todas as suas análises
olhando para três elementos: o salário-mínimo, o Bolsa Família, e a estrutura
sindical brasileira. Mas houve outras coisas que aconteceram de 2002 a 2016 que
não estão nessa lista. Vou citar algumas delas: construção de universidades
federais, PAC, Pronatec, Fies, aumento de bolsas CAPES e CNPQ, Ciência sem
Fronteiras, Luz para Todos, Brasil Sorridente, Mais Médicos, etc. A história
política brasileira é construída também a partir de suas políticas públicas e
do modo como elas impactam a qualidade de vida da população. Não é à toa (e
nisso o autor anui) que as manifestações de junho de 2013 se iniciaram a partir
do aumento da tarifa dos ônibus em São Paulo. Ainda que o foro dessa discussão
fosse o município de São Paulo (à época também governado pelo PT), a
multiplicidade e a profusão das lutas acabou por ganhar outros contornos.
Gostaria, aqui, de retomar a
discussão sobre a importância do retorno do PT ao jogo político, apresentando a
segunda razão sobre o porquê desse fenômeno ser importante (a primeira,
longamente discutida acima, tem a ver com o PT ser diferente dos partidos que o
antecederam na condução do país).
Trata-se da resistência do
pensamento. Ora, como é possível que esse partido esteja de volta ao jogo?
Mesmo prendendo o Lula, mesmo com as campanhas que o difamaram (a ele e a
qualquer pessoa do partido). Ora, nisso reside alguma semelhança com o fato de
eu estar aqui escrevendo esse texto, à revelia do projeto neoliberal que esteve
desde o dia zero inculcando ideias na minha cabeça em uma única direção, oposta
às ideias que aqui coloco.
Penso que parece haver alguma
parte do pensamento que resiste às investidas neoliberais. Não sei se em todo
canto, não sei se em todo lugar. Mas que há, há.
Isso explica não só o retorno do
PT e o viés desse texto, mas também outros fenômenos interessantes. O mais
interessante deles é o sucesso de páginas na internet, especialmente no
instagram, que discutem e/ou satirizam o mundo do trabalho (e também a
construção do sujeito-empresa) em sua acepção neoliberal e desvitalizante. Alguns
desses perfis são:
Dicas do Burnoutinho
(@burnoutinhotips) – apresenta ‘dicas’ sobre situações de trabalho excessivo, a
partir de um viés que entende o trabalho como gerador de doença;
Festa da Firma
(@festadafirma) – de perfil mais moderado, apresenta com leveza e bom humor
situações engraçadas do mundo corporativo;
Coach de Fracassos
(@coachdefracassos) – satiriza páginas de autoajuda no estilo coach,
numa estética niilista;
Saúde Mental Crítica (@saudementalcritica)
– mostra discussões importantes no campo da saúde mental, especialmente em sua
relação com o trabalho e o modo de vida capitalista;
Comunicação Muito Violenta
(@comunicacaomuitoviolenta) – inverte a lógica da “Comunicação Não-Violenta” e
apresenta de maneira rude, mas engraçada, situações do mundo corporativo, mas
não só. Atualmente, a conta principal está suspensa e a página segue no perfil
@comunicacaomaisvolenta.
Todos esses perfis têm uma
semelhança com as tirinhas de humor corporativo “Dilbert”, muito famosas nos
anos 1980 e 1990, que sempre traziam uma perspectiva crítica sobre o mundo
corporativo. É relevante marcar, contudo, uma diferença bem importante. As
tirinhas “Dilbert” saíam em jornais de grande circulação e o nome de seu criador
é público: Scott Adams. Dos anos 1980 para cá, a ideologia do pensamento
corporativo único se estabeleceu de forma tão ubíqua que não é possível mais
apresentar essa crítica, como um contraponto ao mundo, em locais mais
tradicionais de circulação. Dessa maneira, todos os perfis acima levantados são
anônimos. Ninguém sabe quem é que está por trás desses perfis. E isso tem uma
razão de ser. Muito provavelmente essas páginas são mantidas por pessoas que
vivem do seu trabalho e que, portanto, não podem aparecer publicamente
criticando o mundo corporativo. Existe algo de muito insurgente e, porque não
dizer, subversivo mesmo, em atentar contra a lógica de produção capitalista.
Fazer troça da cultura de inovação e do empreendedorismo, por exemplo, deixa as
pessoas vulneráveis à demissão / desemprego, uma vez que passam a ser lidas
como inimigas, um mal a ser combatido. O sistema capitalista é hábil em se
perpetuar não só porque avança cada vez mais na produção de mais-valor quando
explora o trabalho humano mas também porque impede, explícita ou
subrepticiamente, a discussão e o dissenso.
Penso que esses perfis
anticapitalistas na internet têm um papel muito importante como mecanismos de
difusão de ideias sobre o trabalho do ponto de vista dos trabalhadores. É claro
que essa exposição é fragil. Os perfis são vulneráveis a uma grande corporação
(o instagram) que pode, a qualquer tempo, derrubá-los sem muita justificativa.
Nesse sentido, entendo que eles
também não se configuram como uma força política organizada e que, portanto,
não têm poder efetivo na mediação política de relação entre patrões e
empregados.
Mas penso que são um fenômeno
importante. Do meu ponto de vista, sinto que esses perfis criam laços entre os
trabalhadores. Entendo que a angústia que sinto em relação ao modo de vida
capitalista é compartilhada. Há mais gente no mundo, também sujeita às
condições desiguais que regem o mundo do trabalho, que sofre de maneira
parecida, e pelos mesmos motivos. Enquanto somos bombardeados pelos meios de
comunicação com o mesmo pacote de verdades, que engloba, a um só tempo, a
recuperação da economia através das privatizações e a ética empreendedora do
mundo coach / startup / inovação, há gente na internet que
desnuda essa ética, apresentando o ridículo de tudo isso.
Essa também é uma virtude do
livro de Ricardo Antunes. Lê-lo, e entrar em contato com o modo no qual ele
desmonta a lógica de produção capitalista, em especial na fase de transição do
fordismo para a empresa flexível (toyotista) é também uma mão esticada em
solidariedade ao leitor. Nesse sentido, a experiência da leitura, ainda que
pontuada por muitas críticas (como pode ser visto acima) tem um sentido de
“Escute, você não está sozinho.”
Essa noção de solidariedade com
as agruras do trabalho é especialmente importante nesse momento de pandemia que
atravessamos.
Sei que faço parte de um grupo
muitíssimo privilegiado que ainda não retornou do teletrabalho (o que deve
acontecer em breve), mas percebo que as dimensões afetivas relacionadas ao trabalho,
que têm a ver com a presença física no espaço laboral e com o compartilhamento
da solidariedade com os outros colegas/amigos trabalhadores são importantes e
ajudam a construir sentido e propósito no trabalho.
Durante a pandemia (e esse longo
período de teletrabalho), o que tenho experimentado é uma certa falta de
propósito no trabalho. Essa falta de propósito possui um aspecto estrutural,
mas não só. Um dos pontos defendidos no livro, cuja discussão remonta aos
textos de Karl Marx, é que o trabalho carece mesmo de sentido se não é livre,
ou seja, se é pensado não em termos de sua contribuição real ao mundo social,
mas se é pensado apenas como um gerador de mais-valor para quem detém os meios
de produção. Esse é um aspecto estrutural. A discussão filosófica sobre o
sentido do trabalho (nos capítulos 5 e 6) é um dos pontos altos do livro e,
ainda que sua leitura seja difícil (pois adentra mais fundo na filosofia), é
onde senti mais a solidariedade. Pensei comigo “é isso, eu não estou maluco.”
Existe algo mesmo de destitutivo de si no exercício do trabalho, algo
desvitalizante.
Reproduzo um trecho do capítulo
5: “Contemplando traços de continuidade em relação ao fordismo vigente ao
longo do século XX, mas seguindo um receituário com claros elementos de diferenciação
e descontinuidade, a empresa da flexibilidade liofilizada acabou por engendrar
novos e mais complexificados mecanismos de interiorização, de personificação do
trabalho, sob o “envolvimento incitado” do capital, incentivando o exercício de
uma subjetividade marcada pela inautenticidade, isto é, aquela que ocorre
quando o estímulo para o exercício da subjetividade do trabalho é sempre
conformado pelos interesses das empresas, não comportando nenhum traço que
confronte o ideário do lucro e do aumento da produtividade.”
O conceito de “subjetividade
marcada pela inautenticidade” é muito poderoso e penso que ele sintetiza o
ideário neoliberal no modo como as empresas veem os seus trabalhadores, e
também como esses trabalhadores, ao fim e ao cabo, também acabam por ver a si
mesmos.
Pessoalmente, escolhi fazer
concurso público porque sempre gostei da ideia de imaginar o meu trabalho tendo
como fim último o benefício da sociedade. Mas é inacreditável o modo como as
empresas públicas também foram completamente capturadas pela lógica das
empresas privadas, impondo os mesmos mecanismos de controle de trabalho por
metas, incentivando a competição entre os trabalhadores e despejando o
mesmíssimo jargão corporativo sobre os seus empregado. O que vemos é que, em última
análise, as empresas públicas têm orientado a sua força produtiva cada vez mais
ao capital e menos à sociedade.
Esse aspecto estrutural das
relações entre capital e trabalho, que se espraia também pelo setor público,
parece não poder ser alterado individualmente. Só as lutas coletivas mesmo
podem virar esse jogo.
Agora, ainda que entendamos a
instituição ‘sindicato’ como um agente importante nesse processo, não sei se
ele, por si só, nas condições que temos hoje, é capaz de levar a cabo sozinho
esta luta.
Ricardo Antunes finaliza o livro
com dez pontos importantes que os sindicatos devem enfrentar caso queiram
permanecer como instituições relevantes. São muitos os desafios. Mas penso que
talvez o maior deles seja mesmo o de se abrir um pensamento mais arejado que
advenha da juventude.
Por exemplo, durante esse período
da pandemia, que conjunturalmente afetou as já solapadas relações de
solidariedade entre os trabalhadores, não senti o sindicato perto de mim. A
verdade é que não o venho sentindo próximo, mesmo antes da pandemia, e essa
falta de proximidade não é só porque o sindicato não se aproxima de mim, mas
porque eu também não me aproximo dele.
Nesse sentido, ainda que
relevante do ponto de vista político, sinto que o desinteresse mútuo entre mim
e o sindicato é de ordem estética.
Não me vejo representado no modo
de falar das pessoas do sindicato, no modo de pensar e organizar as lutas.
Entendo que meu desinteresse não é um fenômeno puramente subjetivo. Ao
contrário, entendo que parte disso é também a erosão do meu próprio caráter na
direção de uma ética capitalista individualizante. Mas também não posso pegar
sozinho essa culpa. Sendo uma das pessoas mais jovens da empresa que trabalho,
sinto que o sindicato é uma coisa velha.
Vejam: faço minha contribuição
mensal ao sindicato e sempre incentivo meus colegas de trabalho a se filiarem.
Entendo que o sindicato é a única ferramenta formal de luta hoje por melhores
condições de trabalho. Mas a verdade é que, na busca da solidariedade que
necessito, de compartilhar as agruras e dores do trabalho, encontrei mais
acolhida nas páginas da internet do que na estrutura formal oferecida pelo
sindicato.
Isso nos leva a pensar na direção
que as lutas devem seguir. Se, para mim, que já não sou tão jovem, a ideia de
sindicato parece uma coisa velha, será que é ainda esta instituição que vai
trazer o frescor e a adesão da juventude às lutas?
Antunes acha que sim. Ele
discorre nos capítulos 11 e 12, em outro ponto alto do livro, sobre a história
sindical brasileira. O autor coloca como o somatório acumulado das lutas, as
experiências coletivas dos trabalhadores e, principalmente, a criação das
centrais sindicais no Brasil, criou um cenário favorável aos trabalhadores,
possibilitando a ascensão de um líder sindical ao posto mais alto de poder
político no Brasil. Para o autor, o sindicato como instituição é ainda quem vai
forjar as novas lutas e travá-las em nome da classe trabalhadora.
Meu ponto de vista diverge em
parte, mas não no todo. Penso que os sindicatos continuarão existindo e tendo
relevância política no Brasil, mas vão precisar se repensar na estética e
também entender que o conceito de protagonismo está ele mesmo em xeque após as
lutas multifacetadas de 2013. Será preciso abraçar os memes e falar com o
público mais jovem. Até os partidos políticos já aprenderam essa lição, mas os
sindicatos ainda não.
Em relação ao protagonismo,
vêm-me à cabeça outros movimentos questionadores e criativos. Um deles é o
Occupy Wall Street, que aconteceu há mais de dez anos e questionou o rentismo e
a financeirização do capitalismo. Mas penso que outro, mais relevante e que
está acontecendo agora em 2021, é o “ficar deitado”.
Na China, um jovem começou a
propalar na internet a ideia de “ficar deitado” isto é, a de não fazer nada e
não trabalhar. O jovem parecia apenas viver de poucos rendimentos, e apresentava
uma espécie de recusa ativa ao trabalho. O movimento cresceu a ponto de
perturbar o governo chinês, fazendo com que o termo “tang ping” (que significa
“ficar deitado”) fosse banido das buscas na internet pelo censura governamental.
O potencial disruptivo do tang
ping é similar talvez ao provocado pela onda hippie nos anos 1960/70,
que foi logo engolida pelos yuppies dos anos seguintes.
Mas a recusa ativa ao trabalho é
perturbadora para o capital. O caso “tang ping” ratifica a percepção do autor
de “O privilégio da servidão” da centralidade do trabalho na vida, e de como o
capital ainda depende do trabalho humano para a geração de mais-valor (fosse o
trabalho tão desnecessário como por vezes querem nos fazer crer, o movimento
dos jovens chineses não seria problemático).
Contudo, esse é um movimento de
jovens desempregados, que querem abraçar um outro modo de vida, diferente
daquele oferecido pelo capital. Como os sindicatos, por exemplo, poderiam se
aproximar desse movimento para entendê-lo e somar esforços na construção de um
mundo que possua relações trabalhistas mais justas?
A perspectiva sindical oferecida
pelo livro, portanto, é boa, mas não é suficiente. É preciso pensar a
articulação do movimento sindical com outras lutas e outros movimentos,
vinculados ou não ao mundo do trabalho.
Sob a perspectiva radical
apresentada pelo autor, de destruir o mundo tal como é e colocar outro no
lugar, sinto-me em uma espécie de impasse. Não vislumbro muitas formas de mudar
o mundo e as relações de trabalho capitalistas, mas também não vislumbro a
revolução.
Quero crer que as forças
criativas e potentes dos mais jovens traga um novo frescor e alguma perspectiva
de mudança nesse cenário. Enquanto isso, permanecemos um pouco tristes com o
mundo tal como é, mas ainda temos uns aos outros. Não à toa, esse texto diz na
primeira frase que se trata de um livro difícil. A dificuldade não está apenas
no que apresento de divergências em relação ao autor nem em relação à estrutura
do texto e dos capítulos, já longamente discutida nesse texto. Ao contrário,
parte da dificuldade do texto é também a de entrar em contato com a dureza da
realidade que se vive no mundo do trabalho e, não obstante meus privilégios, da
qual também faço parte.
Por fim, penso que a perspectiva
apresentada pelo autor é, em certo sentido, oposta à minha (ainda que muito do
meu pensamento esteja alinhado com o dele). Antunes é duro com os governos do
PT, ao mesmo tempo que alimenta o sonho de uma revolução. Ambos os acentos
usados por Ricardo Antunes, o pessimista e o otimista, na construção de seu
texto, me parecem um pouco fora do tom. Gosto, porém, do modo pragmático que
ele apresenta a história sindical no Brasil e da construção teórica sofisticada
sobre o sentido do trabalho, sob um prisma filosófico.
De minha parte, reconheço os
avanços petistas, e não consigo antever um processo revolucionário do modo como
o autor propõe. Mas penso também que há potências aqui e ali, como o Occupy Wall
Street, o ficar deitado, e as páginas de crítica ao capitalismo no Instagram
que, à parte da via sindical, fortalecem os vínculos de solidariedade entre
aqueles que são afetados pelas relações desiguais de trabalho vigentes na ética
capitalista. Como diz uma amiga minha: ‘o que vai acontecer já está
acontecendo’.
Por fim, acho também que a
engenharia de produção precisa se repensar como campo de conhecimento de
maneira a englobar a pluralidade de pontos de vista existentes nas relações de
trabalho e no modo como as identidades atravessam e são atravessadas pelos
sistemas de produção.
Isso já acontece de alguma forma,
de maneira tímida. Fui uma vez a um congresso chamado ENEDS – Encontro Nacional
de Engenharia e Desenvolvimento Social, formado por pessoas que pensam a
engenharia como um todo de maneira crítica. Hoje estou participando como aluno,
virtualmente, de um curso de extensão na UFABC de Engenharia Popular que, na
mesma toada do ENEDS, quer pensar a engenharia de uma outra forma.
Nesse curso, descobri, por
exemplo, o conceito de fábricas recuperadas por trabalhadores. O Brasil possuía
algumas fábricas nessa condição, que é o que acontece quando a fábrica entra em
processo falimentar e os trabalhadores, de maneira organizada, assumem a
produção fabril. É literalmente o controle operário da produção.
Hoje há poucas empresas nessa
situação no Brasil, uma vez que judicialmente trata-se de um processo bem
complicado. Mas um dos casos mais emblemáticos ainda está em funcionamento. A
indústria Flaskô fica no estado de São Paulo e tem sua produção conduzida por
trabalhadores há mais de dez anos.
Nenhum Slack, Kotler ou
Chiavenato falou sobre a realidade das empresas recuperadas por trabalhadores,
de maneira que em dez anos, como já disse, não fui exposto a esse tipo de
produção de conhecimento.
Mas a Flaskô existe. Não só
existe, como eu fui capaz de criar mecanismos de resistência ativa do
pensamento que me possibilitaram acessar esse curso, entrar em contato com essa
realidade (até então desconhecida para mim) e reproduzi-la aqui nesse texto.
Portanto, o que temos a fazer é,
antes de tudo, acreditar que um novo mundo é possível. O quão novo será esse
mundo vai depender da elasticidade dos nossos sonhos, mas em alguma mudança é
necessário crer.
Encontrar as brechas e, a partir delas, abrir caminhos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário