O primeiro detalhe que me chamou a atenção n’O Privilégio da
Servidão foi o estilo de escrita e da argumentação. Um trabalho definitivamente
acadêmico, articulando a complexidade de muitos conceitos, às vezes explicados
em detalhes, às vezes não o suficiente para eu compreender. Tive a nítida
impressão de estar diante de um texto alemão.
Na verdade, tive contato com o livro um pouco depois do
lançamento da primeira edição. Lembro de ter lido um texto introdutório em que
ele defende a importância do livro frente os artigos como publicação de
excelência, e depois diz que fez o livro costurando artigos. Mas isso não me
incomodou, os assuntos ou conceitos colocados repetidamente acabam por
facilitar a compreensão, e algumas vezes eram debatidos em perspectivas
diferentes (embora não muito). O texto é ricamente referenciado (ok, muitas
vezes é o próprio autor se citando, ou então repete as mesmas fontes ao longo
dos capítulos, mas ainda assim há muitas obras citadas), trazendo referências
mundiais e nacionais relevantes, além da construção de conceitos pelo próprio Ricardo
Antunes e pelos pesquisadores a quem se associou. Eu gostaria de escrever
assim, de maneira organizada, com referências sólidas e teses bem fundamentadas.
Ao longo deste textão vou fazer muitas críticas à obra, mas afirmo desde já
minha profunda admiração pelo autor e pelo esmero com que ele constrói seus
trabalhos.
O Precariado
Logo no início ele dialoga com duas teses: a do precariado e
a do fim do trabalho. A do fim do trabalho ele cita algumas obras, mas acho que
isso talvez tenha feito sentido em algum momento anterior nas ciências sociais,
hoje acredito que ninguém defenda mais.
Sobre o precariado ele fala mais longamente, e, como eu tive
algum contato com a obra em que esse conceito é elaborado (O Precariado – A Nova
Classe Perigosa, de Guy Standing. No final eu compilo as obras aqui citadas),
achei relevante fazer alguns destaques. Primeiro, que concordo com um argumento
dele de que levantar o precariado como a nova classe perigosa faz sentido nos
países centrais do capitalismo, onde o precariado surge em oposição à massa de
trabalhadores amparados – ou abandonados – pelo Estado de bem-estar social. Partindo
dessa premissa, falar em precariado no Brasil não faz tanto sentido, porque
sempre fomos precários em relação a direitos trabalhistas. Pelo que me lembro,
o Brasil nunca chegou a ter a maioria de seus trabalhadores na formalidade.
Malgrado o grande crescimento da formalização e criação de empregos com
carteira assinada nos anos Lula e Dilma, o contingente de trabalhadores informais
sempre foi muito significativo.
Antunes não menciona, no livro, uma outra característica do
precariado que eu achei muito importante quando li o Guy Standing [toda vez que
leio esse nome, penso “aquele cara em pé”]. Que é uma espécie de “espírito do
precariado”, em que o trabalhador precarizado não traz os sonhos dos órfãos do welfare
state, mas quer ser independente, enxerga no trabalho um meio para
conseguir algum outro objetivo, seja diversão no fim de semana, seja comprar
alguma coisa. Não se tem mais a identificação com o trabalho na mesma
intensidade que se tinha antes dos anos 1980. Sobre isso, recomendo um outro
livro, A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett, que não fala exatamente sobre
precariado, mas traz uma boa reflexão sobre a relação do sujeito com o sentido
de seu trabalho, justamente na era em que foram introduzidas as medidas de
flexibilização nas relações laborais nos EUA.
De modo geral essa ressalva que eu trouxe na argumentação de
Antunes contra o conceito de precariado se aplica também a outros dos ensaios
que compõem o livro. Apesar de ele falar na necessidade de se criar um novo
modelo de sociedade, autônomo e emancipado, ele não desenvolve muito o modo
como a exata antítese disto está sendo esculpida na subjetividade de cada um de
nós. Apesar de ele dedicar um capítulo a esse tema, senti falta de uma
elaboração mais profunda, talvez por ser mais precisamente a minha área de
interesse, mas mais adiante eu volto a essa discussão. Sei que ele é sensível a
esse tema, e um dos autores que cita (Giovanni Alves) é pesquisador dessa área.
Processo tecnológico-organizacional-informacional
Ele fala de um processo tecnológico-organizacional-informacional
que desemboca na precarização do proletariado, e eu achei essa síntese muito
boa, pois é justamente por meio desses três eixos que se aprofunda a subordinação
do trabalho ao capital. O avanço tecnológico gera o crescimento do
trabalho morto sobre o trabalho vivo, na medida em que processos vão sendo
automatizados e controlados por máquinas, reduzindo a margem de ação de cada
trabalhador. Se por um lado isso contribui para a docilização do operário — ele
passa a executar tarefas simples, como apertar um botão — por outro ela gera
uma alienação, um estranhamento ainda maior do sujeito em relação à sua tarefa
e ao seu trabalho, que fica cada vez mais esvaziado de sentido. Como exemplo,
Sennett conta, n’A Corrosão do Caráter, a história de uma padaria a que ele vai
duas vezes, com 20 anos de intervalo entre uma visita e outra. Na primeira
ocasião ele vê padeiros advindos de uma comunidade local de imigrantes gregos,
que tinham alguma solidariedade entre si, carregavam rusgas antigas e cuidavam
de fazer pão. Vinte anos depois, há apenas um padeiro, e os outros funcionários
estão pouco envolvidos com o ofício da panificação, já quase toda mecanizada:
bastava apertar o botão “pão” quando era para fazer pão e o botão “brioche”
quando era para fazer brioche. Poucos dos funcionários, nessa segunda ocasião,
se identificavam como padeiros.
As mudanças organizacionais, materializadas nas novas
ferramentas de gestão, cumprem seu papel em extrair mais trabalho do
funcionário; metas de produtividade, remuneração por produção, disfarce da
remuneração em participação nos lucros, incentivo à competição entre os trabalhadores
são exemplos de procedimentos que constituem o eixo “controle psicológico” do avanço
do capital sobre o trabalho. Neste ponto eu insisto novamente na falha do livro
em sublinhar a importância desse eixo na criação do ethos do capital,
fundado no fetiche da mercadoria, responsável pela penetração do sistema
sociometabólico do capital na subjetividade, na nossa própria noção de cidadania.
Esses valores de competitividade, de metas a cumprir, da primazia do sucesso, têm
papel fundamental na construção e perpetuação desse sistema de metabolismo
social, uma vez que dificulta a organização coletiva e, por se impor como natural,
passa a impressão de que não há alternativa, todos devemos aceitar esse ethos.
Torne-se empreendedor de si mesmo, ou morra. A máscara burguesa é uma questão
de sobrevivência.
Aqui cito outro livro, “O Culto à Performance”, de Alain
Ehrenberg, em que ele usa a metáfora do esporte de competição para dar conta de
um modelo competitivo de estar no mundo, em que não há diferença entre ser o
segundo colocado e estar arruinado. Entre outros pontos (o livro é bem
interessante), ele coloca a naturalização do desemprego como parte da vida moderna
ocidental. Hoje aceitamos taxas de desemprego inimagináveis tempos atrás. Hoje cada
pessoa é individualmente responsabilizada por não conseguir emprego. Não se
discute o fato de haver poucas vagas de emprego, apesar de haver muito trabalho
a ser feito.
Informacional, porque, na minha interpretação, o
avanço tecnológico a serviço do capital se dá também no sentido do controle. O
exercício do trabalho fica atado a procedimentos rigidamente definidos no “sistema”,
que não permite alterações, variações, novos caminhos. A figura do chefe rígido
já não é necessária: ele é representado pela entidade “sistema”. Isso está em
linha com os primeiros processos de organização “científica” do trabalho
elaborados pelo pai da engenharia de produção, F. W. Taylor, no fim do séc. XIX
e começo do XX, quando começou a ser sistematizada a separação entre o
planejamento e a execução do trabalho. Quando essa execução é muito rigidamente
controlada, o trabalho perde muito seu sentido (vide a padaria do Sennett).
Pois, segundo Christophe Dejours (ninguém me segura no name dropping
hoje), o sentido do trabalho está justamente na distância entre o trabalho
prescrito e o realizado. É ali, lidando com o imprevisto que está o real do
trabalho. Se não se pode fugir ao prescrito, o trabalho torna-se excessivamente
abstrato, portanto desprovido de sentido.
Nova morfologia do trabalho e sistema sociometabólico
Antunes faz um excelente diagnóstico da nova morfologia do
trabalho, que acho que é o conceito que ele tenta emplacar com o livro. As
colocações dele sobre terceirização são interessantíssimas, e eu destaco também
a forma como ele enfatiza a necessidade da inclusão das pautas das “minorias”
(cansei de name dropping, mas podemos depois falar sobre minoria em
Deleuze) na discussão sobre trabalho.
Aqui queria citar uma experiência minha no trabalho na Justiça
Federal. Um dia andei por uma parte do corredor do meu andar a que não estava
habituado. No fundo havia um elevador de serviço. Na hora em que eu passei,
abriu a porta do elevador, e dele saíram 4 ou cinco trabalhadores da limpeza,
terceirizados, uniformizados com roupas estampando a logomarca da empresa. Todos
negros. O elevador era de serviço, separado dos elevadores usados pelos
funcionários do judiciário. Os magistrados tinham outro elevador. Só este fato
tem tantos níveis de problemas sociais que não dá nem para começar essa
discussão aqui.
Voltando ao Ricardo Antunes, ele trouxe mais um ponto importante.
A terceirização funciona como uma privatização, e a privatização é uma forma de
entregar ao capital um bem público. Transforma em mercadoria algo que antes não
era comercializado dessa forma, com o objetivo de gerar lucro para alguém que
já tem dinheiro. Canaliza o dinheiro público para donos de empresas. Isso é
acumulação original. O Harvey fala disso em algum episódio do podcast (The Anti-capitalist
chronicles), que a acumulação original não parou de acontecer com o fim da
colonização. A necessidade de expansão do capital é tão voraz e generalizada,
que, continuamente, recursos que não são mercadorias são apropriados e transformados
em mercadoria para serem vendidos. Ou então são destruídos. Esse é um dos
pontos que Antunes também enfatiza, o potencial enormemente destruidor desta fase
do capitalismo. Como sistema sociometabólico, o capitalismo é totalizante, no
sentido de que a ele todos devem se ajustar, ou perecer (Para Além do Capital, Meszáros).
Isso serve não somente para os trabalhadores, mas também para a burguesia. A
concorrência é feroz inclusive para os detentores dos meios de produção: ou
expande, engole os concorrentes e vira monopólio, ou desaparece.
Ao falar sobre a nova morfologia do trabalho, Antunes chama
a atenção para algo importante. Muito se fala em desindustrialização, mas o que
ocorre não é um sumiço das indústrias, mas seu deslocamento. Os eixos de
produção em massa não estão mais centrados no norte global, mas no sul, nas
áreas periféricas onde é possível chegar a níveis mais degradantes de
exploração do trabalho, de precarização, de falta de controle da saúde do trabalhador,
de prevenção de acidentes e garantias de direitos mínimos.
Além disso, ele nos faz atentar para o fato de que apenas
uma parte do capital financeiro é fictício: a maior parte dele continua
atrelado à produção, ao que chamamos de “economia real”, embora ele não use
esse termo no livro, que eu me lembre. Isso volta a trazer ênfase à centralidade do trabalho, pois é o trabalho humano, vivo, que gera valor. O trabalho da
máquina, trabalho morto, não pode ser superexplorado, é um custo fixo, portanto
não gera mais-valor.
Sindicalismo e "purismo" revolucionário
No segmento em que fala sobre sindicalismo, o livro é uma verdadeira
aula sobre a história recente dos movimentos sindicais no Brasil. Ele coloca
muito bem pontos de vista a que eu não tinha tido acesso antes, como a criação
das centrais sindicais e a proposta do que se chamou de novo sindicalismo no final
da década de 1970.
Ele tece críticas ao movimento que a CUT e outras centrais
sindicais fizeram no sentido da conciliação com atores ligados ao governo e
chegando a fazer parte desse mesmo governo. Eu compreendo as críticas que ele
faz, mas vejo ali a defesa de um “purismo” revolucionário, que acaba por perder
de vista a necessidade de acordos concretos para não se perder mais ainda em
situações já desvantajosas na queda de braço com o capital.
Críticas duras também são feitas aos governos do PT, que ele
entende como tendo sido de continuidade com as políticas neoliberais dos
anteriores (Collor e FHC). Por mais que eu concorde em grande parte com essas
críticas, acho que chamou muita atenção para a continuidade entre essas formas
de governar em detrimento das diferenças entre elas. Lula e Dilma fizeram
investimentos pesados em educação, por exemplo, de maneira incomparável aos
avanços da era FHC. Podemos elaborar aqui críticas a essa expansão da
educação, que teria favorecido um modelo produtivista na pós-graduação, ou
então que os programas de financiamento para instituições privadas de ensino
superior criaram verdadeiros impérios empresariais na área, mas é inegável que
a criação de tantas universidades e institutos federais gerou modificações
profundas na estrutura de uma sociedade. Antunes perde esse ponto.
Caminhos possíveis: construções coletivas e individualismo
Em seus capítulos finais, Antunes tenta tecer caminhos. Ele propõe a criação de um novo ethos, com autonomia, autodeterminação e emancipação,
com a substituição do sistema sociometabólico do capital. A resposta seria então
um reforço dos laços coletivos, de organização da classe que vive do trabalho, incluindo
os desempregados, precarizados e as pautas das minorias, na recuperação do
sentido do trabalho. Há um forte obstáculo a essa construção coletiva, que é
justamente a captura subjetiva posta em prática pelo ethos do capital. O
fetiche (feitiço) da mercadoria é voraz e se expande continuamente. E essa força é
individualizante. Como reforçar laços coletivos de organização se a
sociabilidade se dá, como ele mesmo disse, por coágulos, ou seja, grupamentos
isolados aqui e ali, pouco organizados?
Deixo então para o final minha última referência, que está
no título desde textão que já virou um ensaio. O metabolismo social do capital
nos impõe uma máscara burguesa. Somos, trabalhadores ou não, convocados
a funcionar como empreendedores, como empresas, mas continuamos a ser
trabalhadores. Analogamente às máscaras brancas discutidas por Fanon, as
máscaras burguesas não tornam os trabalhadores detentores dos meios de
produção, ou bem-sucedidos empresários. Geram no máximo vendedores exaustos de
bolo de pote, ou cerveja artesanal. O rompimento com a máscara burguesa, com o
sujeito-empresa (A Nova Razão do Mundo, de Laval e Dardot), é causa e consequência
de um movimento morro acima, de suspensão do individualismo e de reforço dos
laços coletivos. Não à toa, o capitalismo e o individualismo são marcas do
pensamento europeu. Não é da Europa que vai sair a solução, dali veio o
problema. As soluções serão múltiplas, e daí também é difícil concordar com a
proposta universalizante de Antunes, em franca contradição com a pluralidade
das forças que ele deseja ver unidas no movimento dos trabalhadores. A
emancipação está nas dissidências.
Do meu ponto de vista de médico de instituição pública,
percebo que essa dissidência está presente nos funcionários, no
ceticismo expresso quando encontram o vocabulário empresarial, com metas, inovação,
resiliência (esse termo lindo destruído pelo mercado) etc. Muitos percebem que
o discurso é oco, e que no fim é apenas uma maneira de extrair produtividade. Além
do ceticismo – ou cinismo – há a reação da introjeção desse discurso, em uma
naturalização da máscara burguesa. Muitos passam anos “dando o sangue” para a instituição,
e, quando adoecem (veja bem, não é se, mas quando), são tratados
como peças, que devem ser substituídas quando dão defeito. Tendo a olhar esse
adoecimento como uma forma de resistência, de dissidência. A saúde mental é um
dos principais limites à expansão do capitalismo hoje em dia (o outro é o meio
ambiente).
Por onde quer que se olhe, só o que é oferecido são as
perspectivas de mercado, o discurso empresarial, a responsabilização
individual. Falhamos em propor alternativas de massa ao sujeito empresa. Antunes
fala muito em produzir o novo modo de ser, autônomo, a partir de uma construção
coletiva universalizada. Pois eu acho muito difícil construirmos algo coletivo sob
a égide do individualismo. Que motorista de aplicativo vai conseguir aderir a
uma paralisação se isso comprometer a capacidade de sua família de realizar
refeições?
Pode ser que uma semente de dissidência em massa já tenha sido
lançada em algum ponto da história recente. Ela passa pela quebra da máscara
burguesa, pela criação de uma nova consciência de unidade na classe que vive do
trabalho. É possível que o que nos esteja faltando seja apenas uma perspectiva
de tempo. Mas, a longo prazo, estaremos todos mortos.
Obras citadas:
Pierre Dardot e Cristian Laval - A nova Razão do Mundo.
Alain Ehrenberg – Culto à Performance.
Frantz Fanon – Pele Negra, Máscaras Brancas.
David Harvey – The Anti-capitalist Chronicles (podcast).
István Mészáros – Para Além do Capital.
Richard Sennett – A Corrosão do Caráter.
Guy Standing - O Precariado – a Nova Classe Perigosa.
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