sábado, 21 de agosto de 2021

Pele trabalhadora, máscara burguesa.

 


O primeiro detalhe que me chamou a atenção n’O Privilégio da Servidão foi o estilo de escrita e da argumentação. Um trabalho definitivamente acadêmico, articulando a complexidade de muitos conceitos, às vezes explicados em detalhes, às vezes não o suficiente para eu compreender. Tive a nítida impressão de estar diante de um texto alemão.

Na verdade, tive contato com o livro um pouco depois do lançamento da primeira edição. Lembro de ter lido um texto introdutório em que ele defende a importância do livro frente os artigos como publicação de excelência, e depois diz que fez o livro costurando artigos. Mas isso não me incomodou, os assuntos ou conceitos colocados repetidamente acabam por facilitar a compreensão, e algumas vezes eram debatidos em perspectivas diferentes (embora não muito). O texto é ricamente referenciado (ok, muitas vezes é o próprio autor se citando, ou então repete as mesmas fontes ao longo dos capítulos, mas ainda assim há muitas obras citadas), trazendo referências mundiais e nacionais relevantes, além da construção de conceitos pelo próprio Ricardo Antunes e pelos pesquisadores a quem se associou. Eu gostaria de escrever assim, de maneira organizada, com referências sólidas e teses bem fundamentadas. Ao longo deste textão vou fazer muitas críticas à obra, mas afirmo desde já minha profunda admiração pelo autor e pelo esmero com que ele constrói seus trabalhos.


O Precariado

Logo no início ele dialoga com duas teses: a do precariado e a do fim do trabalho. A do fim do trabalho ele cita algumas obras, mas acho que isso talvez tenha feito sentido em algum momento anterior nas ciências sociais, hoje acredito que ninguém defenda mais.

Sobre o precariado ele fala mais longamente, e, como eu tive algum contato com a obra em que esse conceito é elaborado (O Precariado – A Nova Classe Perigosa, de Guy Standing. No final eu compilo as obras aqui citadas), achei relevante fazer alguns destaques. Primeiro, que concordo com um argumento dele de que levantar o precariado como a nova classe perigosa faz sentido nos países centrais do capitalismo, onde o precariado surge em oposição à massa de trabalhadores amparados – ou abandonados – pelo Estado de bem-estar social. Partindo dessa premissa, falar em precariado no Brasil não faz tanto sentido, porque sempre fomos precários em relação a direitos trabalhistas. Pelo que me lembro, o Brasil nunca chegou a ter a maioria de seus trabalhadores na formalidade. Malgrado o grande crescimento da formalização e criação de empregos com carteira assinada nos anos Lula e Dilma, o contingente de trabalhadores informais sempre foi muito significativo.

Antunes não menciona, no livro, uma outra característica do precariado que eu achei muito importante quando li o Guy Standing [toda vez que leio esse nome, penso “aquele cara em pé”]. Que é uma espécie de “espírito do precariado”, em que o trabalhador precarizado não traz os sonhos dos órfãos do welfare state, mas quer ser independente, enxerga no trabalho um meio para conseguir algum outro objetivo, seja diversão no fim de semana, seja comprar alguma coisa. Não se tem mais a identificação com o trabalho na mesma intensidade que se tinha antes dos anos 1980. Sobre isso, recomendo um outro livro, A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett, que não fala exatamente sobre precariado, mas traz uma boa reflexão sobre a relação do sujeito com o sentido de seu trabalho, justamente na era em que foram introduzidas as medidas de flexibilização nas relações laborais nos EUA.

De modo geral essa ressalva que eu trouxe na argumentação de Antunes contra o conceito de precariado se aplica também a outros dos ensaios que compõem o livro. Apesar de ele falar na necessidade de se criar um novo modelo de sociedade, autônomo e emancipado, ele não desenvolve muito o modo como a exata antítese disto está sendo esculpida na subjetividade de cada um de nós. Apesar de ele dedicar um capítulo a esse tema, senti falta de uma elaboração mais profunda, talvez por ser mais precisamente a minha área de interesse, mas mais adiante eu volto a essa discussão. Sei que ele é sensível a esse tema, e um dos autores que cita (Giovanni Alves) é pesquisador dessa área.


Processo tecnológico-organizacional-informacional

Ele fala de um processo tecnológico-organizacional-informacional que desemboca na precarização do proletariado, e eu achei essa síntese muito boa, pois é justamente por meio desses três eixos que se aprofunda a subordinação do trabalho ao capital. O avanço tecnológico gera o crescimento do trabalho morto sobre o trabalho vivo, na medida em que processos vão sendo automatizados e controlados por máquinas, reduzindo a margem de ação de cada trabalhador. Se por um lado isso contribui para a docilização do operário — ele passa a executar tarefas simples, como apertar um botão — por outro ela gera uma alienação, um estranhamento ainda maior do sujeito em relação à sua tarefa e ao seu trabalho, que fica cada vez mais esvaziado de sentido. Como exemplo, Sennett conta, n’A Corrosão do Caráter, a história de uma padaria a que ele vai duas vezes, com 20 anos de intervalo entre uma visita e outra. Na primeira ocasião ele vê padeiros advindos de uma comunidade local de imigrantes gregos, que tinham alguma solidariedade entre si, carregavam rusgas antigas e cuidavam de fazer pão. Vinte anos depois, há apenas um padeiro, e os outros funcionários estão pouco envolvidos com o ofício da panificação, já quase toda mecanizada: bastava apertar o botão “pão” quando era para fazer pão e o botão “brioche” quando era para fazer brioche. Poucos dos funcionários, nessa segunda ocasião, se identificavam como padeiros.

As mudanças organizacionais, materializadas nas novas ferramentas de gestão, cumprem seu papel em extrair mais trabalho do funcionário; metas de produtividade, remuneração por produção, disfarce da remuneração em participação nos lucros, incentivo à competição entre os trabalhadores são exemplos de procedimentos que constituem o eixo “controle psicológico” do avanço do capital sobre o trabalho. Neste ponto eu insisto novamente na falha do livro em sublinhar a importância desse eixo na criação do ethos do capital, fundado no fetiche da mercadoria, responsável pela penetração do sistema sociometabólico do capital na subjetividade, na nossa própria noção de cidadania. Esses valores de competitividade, de metas a cumprir, da primazia do sucesso, têm papel fundamental na construção e perpetuação desse sistema de metabolismo social, uma vez que dificulta a organização coletiva e, por se impor como natural, passa a impressão de que não há alternativa, todos devemos aceitar esse ethos. Torne-se empreendedor de si mesmo, ou morra. A máscara burguesa é uma questão de sobrevivência.

Aqui cito outro livro, “O Culto à Performance”, de Alain Ehrenberg, em que ele usa a metáfora do esporte de competição para dar conta de um modelo competitivo de estar no mundo, em que não há diferença entre ser o segundo colocado e estar arruinado. Entre outros pontos (o livro é bem interessante), ele coloca a naturalização do desemprego como parte da vida moderna ocidental. Hoje aceitamos taxas de desemprego inimagináveis tempos atrás. Hoje cada pessoa é individualmente responsabilizada por não conseguir emprego. Não se discute o fato de haver poucas vagas de emprego, apesar de haver muito trabalho a ser feito.

Informacional, porque, na minha interpretação, o avanço tecnológico a serviço do capital se dá também no sentido do controle. O exercício do trabalho fica atado a procedimentos rigidamente definidos no “sistema”, que não permite alterações, variações, novos caminhos. A figura do chefe rígido já não é necessária: ele é representado pela entidade “sistema”. Isso está em linha com os primeiros processos de organização “científica” do trabalho elaborados pelo pai da engenharia de produção, F. W. Taylor, no fim do séc. XIX e começo do XX, quando começou a ser sistematizada a separação entre o planejamento e a execução do trabalho. Quando essa execução é muito rigidamente controlada, o trabalho perde muito seu sentido (vide a padaria do Sennett). Pois, segundo Christophe Dejours (ninguém me segura no name dropping hoje), o sentido do trabalho está justamente na distância entre o trabalho prescrito e o realizado. É ali, lidando com o imprevisto que está o real do trabalho. Se não se pode fugir ao prescrito, o trabalho torna-se excessivamente abstrato, portanto desprovido de sentido.  


Nova morfologia do trabalho e sistema sociometabólico 

Antunes faz um excelente diagnóstico da nova morfologia do trabalho, que acho que é o conceito que ele tenta emplacar com o livro. As colocações dele sobre terceirização são interessantíssimas, e eu destaco também a forma como ele enfatiza a necessidade da inclusão das pautas das “minorias” (cansei de name dropping, mas podemos depois falar sobre minoria em Deleuze) na discussão sobre trabalho.

Aqui queria citar uma experiência minha no trabalho na Justiça Federal. Um dia andei por uma parte do corredor do meu andar a que não estava habituado. No fundo havia um elevador de serviço. Na hora em que eu passei, abriu a porta do elevador, e dele saíram 4 ou cinco trabalhadores da limpeza, terceirizados, uniformizados com roupas estampando a logomarca da empresa. Todos negros. O elevador era de serviço, separado dos elevadores usados pelos funcionários do judiciário. Os magistrados tinham outro elevador. Só este fato tem tantos níveis de problemas sociais que não dá nem para começar essa discussão aqui.

Voltando ao Ricardo Antunes, ele trouxe mais um ponto importante. A terceirização funciona como uma privatização, e a privatização é uma forma de entregar ao capital um bem público. Transforma em mercadoria algo que antes não era comercializado dessa forma, com o objetivo de gerar lucro para alguém que já tem dinheiro. Canaliza o dinheiro público para donos de empresas. Isso é acumulação original. O Harvey fala disso em algum episódio do podcast (The Anti-capitalist chronicles), que a acumulação original não parou de acontecer com o fim da colonização. A necessidade de expansão do capital é tão voraz e generalizada, que, continuamente, recursos que não são mercadorias são apropriados e transformados em mercadoria para serem vendidos. Ou então são destruídos. Esse é um dos pontos que Antunes também enfatiza, o potencial enormemente destruidor desta fase do capitalismo. Como sistema sociometabólico, o capitalismo é totalizante, no sentido de que a ele todos devem se ajustar, ou perecer (Para Além do Capital, Meszáros). Isso serve não somente para os trabalhadores, mas também para a burguesia. A concorrência é feroz inclusive para os detentores dos meios de produção: ou expande, engole os concorrentes e vira monopólio, ou desaparece.

Ao falar sobre a nova morfologia do trabalho, Antunes chama a atenção para algo importante. Muito se fala em desindustrialização, mas o que ocorre não é um sumiço das indústrias, mas seu deslocamento. Os eixos de produção em massa não estão mais centrados no norte global, mas no sul, nas áreas periféricas onde é possível chegar a níveis mais degradantes de exploração do trabalho, de precarização, de falta de controle da saúde do trabalhador, de prevenção de acidentes e garantias de direitos mínimos.

Além disso, ele nos faz atentar para o fato de que apenas uma parte do capital financeiro é fictício: a maior parte dele continua atrelado à produção, ao que chamamos de “economia real”, embora ele não use esse termo no livro, que eu me lembre. Isso volta a trazer ênfase à centralidade do trabalho, pois é o trabalho humano, vivo, que gera valor. O trabalho da máquina, trabalho morto, não pode ser superexplorado, é um custo fixo, portanto não gera mais-valor.


Sindicalismo e "purismo" revolucionário

No segmento em que fala sobre sindicalismo, o livro é uma verdadeira aula sobre a história recente dos movimentos sindicais no Brasil. Ele coloca muito bem pontos de vista a que eu não tinha tido acesso antes, como a criação das centrais sindicais e a proposta do que se chamou de novo sindicalismo no final da década de 1970.

Ele tece críticas ao movimento que a CUT e outras centrais sindicais fizeram no sentido da conciliação com atores ligados ao governo e chegando a fazer parte desse mesmo governo. Eu compreendo as críticas que ele faz, mas vejo ali a defesa de um “purismo” revolucionário, que acaba por perder de vista a necessidade de acordos concretos para não se perder mais ainda em situações já desvantajosas na queda de braço com o capital.

Críticas duras também são feitas aos governos do PT, que ele entende como tendo sido de continuidade com as políticas neoliberais dos anteriores (Collor e FHC). Por mais que eu concorde em grande parte com essas críticas, acho que chamou muita atenção para a continuidade entre essas formas de governar em detrimento das diferenças entre elas. Lula e Dilma fizeram investimentos pesados em educação, por exemplo, de maneira incomparável aos avanços da era FHC. Podemos elaborar aqui críticas a essa expansão da educação, que teria favorecido um modelo produtivista na pós-graduação, ou então que os programas de financiamento para instituições privadas de ensino superior criaram verdadeiros impérios empresariais na área, mas é inegável que a criação de tantas universidades e institutos federais gerou modificações profundas na estrutura de uma sociedade. Antunes perde esse ponto.


Caminhos possíveis: construções coletivas e individualismo

Em seus capítulos finais, Antunes tenta tecer caminhos. Ele propõe a criação de um novo ethos, com autonomia, autodeterminação e emancipação, com a substituição do sistema sociometabólico do capital. A resposta seria então um reforço dos laços coletivos, de organização da classe que vive do trabalho, incluindo os desempregados, precarizados e as pautas das minorias, na recuperação do sentido do trabalho. Há um forte obstáculo a essa construção coletiva, que é justamente a captura subjetiva posta em prática pelo ethos do capital. O fetiche (feitiço) da mercadoria é voraz e se expande continuamente. E essa força é individualizante. Como reforçar laços coletivos de organização se a sociabilidade se dá, como ele mesmo disse, por coágulos, ou seja, grupamentos isolados aqui e ali, pouco organizados?

Deixo então para o final minha última referência, que está no título desde textão que já virou um ensaio. O metabolismo social do capital nos impõe uma máscara burguesa. Somos, trabalhadores ou não, convocados a funcionar como empreendedores, como empresas, mas continuamos a ser trabalhadores. Analogamente às máscaras brancas discutidas por Fanon, as máscaras burguesas não tornam os trabalhadores detentores dos meios de produção, ou bem-sucedidos empresários. Geram no máximo vendedores exaustos de bolo de pote, ou cerveja artesanal. O rompimento com a máscara burguesa, com o sujeito-empresa (A Nova Razão do Mundo, de Laval e Dardot), é causa e consequência de um movimento morro acima, de suspensão do individualismo e de reforço dos laços coletivos. Não à toa, o capitalismo e o individualismo são marcas do pensamento europeu. Não é da Europa que vai sair a solução, dali veio o problema. As soluções serão múltiplas, e daí também é difícil concordar com a proposta universalizante de Antunes, em franca contradição com a pluralidade das forças que ele deseja ver unidas no movimento dos trabalhadores. A emancipação está nas dissidências.

Do meu ponto de vista de médico de instituição pública, percebo que essa dissidência está presente nos funcionários, no ceticismo expresso quando encontram o vocabulário empresarial, com metas, inovação, resiliência (esse termo lindo destruído pelo mercado) etc. Muitos percebem que o discurso é oco, e que no fim é apenas uma maneira de extrair produtividade. Além do ceticismo – ou cinismo – há a reação da introjeção desse discurso, em uma naturalização da máscara burguesa. Muitos passam anos “dando o sangue” para a instituição, e, quando adoecem (veja bem, não é se, mas quando), são tratados como peças, que devem ser substituídas quando dão defeito. Tendo a olhar esse adoecimento como uma forma de resistência, de dissidência. A saúde mental é um dos principais limites à expansão do capitalismo hoje em dia (o outro é o meio ambiente).

Por onde quer que se olhe, só o que é oferecido são as perspectivas de mercado, o discurso empresarial, a responsabilização individual. Falhamos em propor alternativas de massa ao sujeito empresa. Antunes fala muito em produzir o novo modo de ser, autônomo, a partir de uma construção coletiva universalizada. Pois eu acho muito difícil construirmos algo coletivo sob a égide do individualismo. Que motorista de aplicativo vai conseguir aderir a uma paralisação se isso comprometer a capacidade de sua família de realizar refeições?

Pode ser que uma semente de dissidência em massa já tenha sido lançada em algum ponto da história recente. Ela passa pela quebra da máscara burguesa, pela criação de uma nova consciência de unidade na classe que vive do trabalho. É possível que o que nos esteja faltando seja apenas uma perspectiva de tempo. Mas, a longo prazo, estaremos todos mortos.

 

Obras citadas:

Pierre Dardot e Cristian Laval - A nova Razão do Mundo.

Alain Ehrenberg – Culto à Performance.

Frantz Fanon – Pele Negra, Máscaras Brancas.

David Harvey – The Anti-capitalist Chronicles (podcast).

István Mészáros – Para Além do Capital.

Richard Sennett – A Corrosão do Caráter.

Guy Standing - O Precariado – a Nova Classe Perigosa.



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